ANO 7 N° 3 - Boletim Informativo da Biblioteca – Outubro/2002
Sou um escritor e desenhista paulistano, nascido em 1949.Casado com a Maria, tenho tres filhos: Maria Isabel, José Eduardo e Clara. Lá em casa mora também uma simpática e peluda carregadora de pulgas de nome Diana. Se entrar ladrão em casa, acho que estamos fritos.Gosto muito de música, tanto que se não fosse escritor tentaria arranjar emprego de pianista de pizzaria. Um dos melhores livros que já li foi o Dom Quixote de Miguel de Cervantes.Falando de pintura, admiro o belga René Magritte.Falando de gravura, admiro o pernambucano Gilvan Samico e também as xilogravuras populares.Torço pelo glorioso Santos Futebol Clube, o gigante indescritível da Vila Belmiro. Aprecio pão, queijo e cerveja por isso minha discreta barriguinha. Sou tímido mas não medroso, se bem que já fugi de cachorro bravo.Calço 43.Acho que a literatura deve tratar sempre daqueles assuntos meio vagos, sobre o quais ninguém pode ensinar, só compartilhar: as emoções, os medos, as paixões, as alegrias, as injustiças, o cômico, os sonhos, a passagem inexorável do tempo, a dupla existência da verdade, as utopias, o sublime, o paradoxal, a busca do auto-conhecimento, coisas banais que fazem parte do dia-a dia de todas as pessoas. Para mim, a literatura, inclusive a infantil, é, sem dúvida, uma forma de tentar compreender a vida e o mundo.
Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador paulista, é autor de mais 90 livros para crianças e jovens, entre eles, Um homem no sótão (Ática - Prêmio Banco Noroeste), Alguma coisa (FTD - Prêmio Jabuti), Maria Gomes (Scipione - Prêmio Jabuti), A outra enciclopédia canina (Companhia das Letrinhas - Prêmio Jabuti), Lúcio vira bicho (Cia das Letras), Meu livro de folclore (Ática), Dezenove poemas desengonçados (Ática - Prêmio Jabuti), Pobre corinthiano careca (Ática - Prêmio APCA), Coleção Pontos de Vista (Ediouro), Meu material escolar (Quinteto), Armazém do Folclore (Ática), Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões (Projeto), Livro de papel (Ed. do Brasil), Como tudo começou (Saraiva), O sábio ao contrário (Senac) e No meio da noite escura tem um pé de maravilha (Ática). Tem livros publicados na Alemanha, Portugal, México e Holanda.Editor de três coleções infanto-juvenis da editora Studio-Nobel. Bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado, mestre em Letras pela Universidade de São Paulo e doutorando na área de Teoria Literária (USP). Pesquisador na área da cultura popular.
Entrevista com um papagaio
Papagaio Voce vive preso numa gaiola?
Ricardo Tá louco! Acho que não!
Papagaio Voce inventou as histórias desse livro?
Ricardo Existem histórias que a gente inventa do começo ao fim. Tenho vários livros assim. As histórias deste livro, entretanto, são contos populares que eu recontei.
Papagaio Contos populares?
Ricardo Sim, são histórias muito antigas, criadas e guardadas na memória do povo. Elas vem sendo contadas de boca em boca desde que os portugueses chegaram no Brasil e até de antes pois os índios também contavam lindas histórias.
Pagagaio Voce quer dizer de bico em bico?
Ricardo Mais ou menos isso. A mesma coisa acontece, por exemplo, com as piadas. Ninguém sabe quem inventou nem de onde vêm. A gente ouve, gosta, dá risada e conta de novo. Cada um, claro, do seu jeito.
Papagaio Mas e no caso dos contos? Como a coisa acontece?
Ricardo Até hoje, nos lugares distantes, onde não há luz elétrica nem televisão, as pessoas à noite, depois do trabalho, costumam sentar em volta de uma fogueira para conversar, falar das novidades, trocar idéías, comentar os acontecimentos do dia. Nessas horas, sempre aparece alguém que sabe e gosta de contar histórias.
Papagaio Mas como esses contadores aprendem suas histórias?
Ricardo Antes de mais nada, todo o contador precisa gostar da história que conta. Sem isso não faz nenhum sentido contar nada. Outra coisa: muitas vezes, essas pessoas não sabem ler nem escrever. Aprendem ouvindo outros contadores e guardam tudo no coração e na memória. Por isso as histórias precisam ser muito boas. Ninguém vai guardar na memória uma história ruim.
Papagaio: E você? Como aprendeu os contos deste livro?
Ricardo Existem pesquisadores maravilhosos, folcloristas, antropólogos, psicólogos, que viajam por aí, encontram esses contadores populares e anotam suas histórias. Depois publicam livros. A partir desses livros, escolho uma história, procuro as várias versões resgatadas pelos diferentes pesquisadores e aí tento contá-la do meu jeito. Há porém no livro No meio da noite escura tem um pé de maravilha histórias que aprendi ouvindo outros contadores. O importante é o seguinte: gosto muito das histórias que selecionei. Elas me emocionam e mexem comigo.
Papagaio Mas prá quê essa trabalheira toda?
Ricardo Uma história boa é um tesouro que merece ser guardado! Estive há pouco tempo em São Luís do Maranhão. Lá escutei uma história contada por uma pessoa analfabeta. Acontece que a tal história é versão do conto A Mulher do Viajante só que meu texto foi baseado numa recolha feita por Ana de Castro Osório em Portugal no fim de século XIX! Não é incrível isso? Se essa história é contada até hoje em São Luís, por uma pessoa que não sabe ler, portanto a aprendeu de outro contador, é porque ela é muito, muito boa.
Papagaio Carambola! É verdade!
Ricardo Outra coisa: esses contos sempre falam de assuntos que interessam a todas as pessoas de qualquer idade. Heróis lutando para se conhecer melhor. Como todos nós. Desafios que o herói precisa enfrentar para conquistar seu objetivo. Como todos nós. Heróis que às vezes precisam encarar o acaso, o desconhecido, o inesperado e o incompreensível. Como todos nós. Fora isso, são histórias cheias de sentimentos e temas conhecidos de todas as pessoas como o amor, a luta pela sobrevivência, a ambigüidade, o medo, a inveja, a curiosidade, o arrependimento, a injustiça, o desânimo, a generosidade, a esperteza e muitos outros. Na verdade, ficamos emocionados e identificados com a coragem, a perseverança e a inteligência do herói do conto maravilhoso. Observando sua luta e os ardis que inventa para vencer seus desafios, aprendemos truques que podem até nos ajudar a construir nossos próprios sonhos. Um desses truques, com certeza, é a esperança.
Papagaio A esperança? Como assim?
Ricardo Vou um exemplo: conhece a história do papagaio que vivia preso na gaiola?
Papagaio Não!
Ricardo Era uma vez um papagaio que vivia preso numa gaiola. Um belo dia, seu dono passou e perguntou: - Tudo bem aí? O papagaio suspirou sem responder nada. - Você reclama de boca cheia, disse o homem, - Sua vida não é tão ruim assim. Tem casa e comida de graça! - Mas eu queria ser livre para poder voar como os outros pássaros! respondeu o papagaio. Seu dono puxou outro assunto: - Amanhã vou sair de viagem. Devo visitar a floresta onde, anos atrás, consegui caçar você. Quer mandar um recado para seus amigos e parentes? O pagagaio levantou a cabeça, olhou bem para o homem e respondeu: - Diga a eles que passo meus dias e minhas noites preso numa maldita gaiola! O dono da casa arranjou as malas e partiu. Voltou de viagem uma semana depois. - E aí? perguntou o papagaio.- Conseguiu falar com meus amigos e parentes? - Sim - respondeu o homem. - mas trago más notícias. Assim que dei a eles seu recado, eles arregalaram os olhos, colocaram as asas na garganta, botaram a língua de fora, gritaram, cambalearam e caíram mortos! Ao ouvir isso, o pagagaio arregalou os olhos, colocou as asas na garganta, botou a língua de fora, gritou, cambaleou e também caiu morto. Chocado e sem saber o que pensar, o homem retirou o corpo do pagagaio e, com cuidado, colocou o pobre bichinho deitado em cima da mesa da cozinha. Assim que se viu livre, o pagagaio deu uma cambalhota no ar e saiu voando. Antes de cair no mundo gritou para o homem: - Quando estiver de novo/ Nos lugares de onde eu vim/Por favor diga ao meu povo/Que o truque deu certo sim! Terminou a história. Gostou?
Papagaio (com lágrimas nos olhos) Curupaco papaco! Se gostei? Caramba! Foi a história mais linda, comovente, triste, dramática, alegre, emocionante e extraordinária que já escutei em toda a minha vida! Aliás, mundando de assunto: quando você está pensando em viajar? (extraída do livro No meio da noite escura tem um pé de maravilha! Ática, 2002)
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Folha da cidade
Itú 18 de setembro de 1998
"Literatura infantil no Brasil" de Angélica Estrada
1 Há quanto tempo você trabalha com o público infantil? Por que fez essa opção?
Publiquei meu primeiro livro, O peixe que podia cantar, com 30 anos, em 1980, mas escrevo para crianças desde os 18 anos de idade. É difícil dizer o porquê dessa opção. O fato de também ser desenhista deve ser uma das razões. É fascinante mexer com o livro ilustrado, construir um diálogo entre texto e imagem. Por outro lado, sempre procurei trabalhar a partir dos aspectos comuns entre crianças e adultos. Não gosto da idéia de "universo infantil". É um estereótipo que só afasta as crianças da vida. Crianças e adultos sempre compartilharam e vão continuar compartilhando o mesmo universo. Isso abre, para o escritor, um leque temático imenso. Estou querendo dizer o seguinte: se existisse um universo exclusivamente infantil, acho que não teria interesse em escrever para crianças.
2 Qual sua maior preocupação ao criar histórias?
Tento sempre fazer um texto claro e direto, utilizando vocabulário popular. Quanto aos temas, procuro aqueles que chamo de "os assuntos que ninguém sabe", ou seja, os assuntos que, por serem subjetivos, não podem ser transformados em lições: a busca do auto-conhecimento; a existência de diferentes pontos de vista; as paixões; os conflitos emocionais; os medos; os sonhos; os acasos; as ambigüidades; a relatividade das coisas; os processos criativos; o cômico; o ardil e por aí afora. No fundo são temas banais, do dia-adia das pessoas: todos nós, independentemente de faixas etárias, conscientes ou não, estamos em busca do nosso auto-conhecimento; somos sujeitos a paixões; temos conflitos e recorremos a ardis. Para mim, a literatura, infantil ou adulta, é sempre uma tentativa, construída a partir de um ponto de vista particular, de entender a vida e o mundo. Aliás, vem justamente daí o seu interesse.
3 Em 1994, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil considerou a Coleção Menino de orelha em pé altamente recomendável às crianças. E a mesma recebeu, em 1995, o prêmio Adolfo Aizen, categoria infantil, da União Brasileira de Escritores. Explicar o sentindos por meio de palavras e ilustrações. Como surgiu essa idéia?
A coleção é composta de seis livros abordando o paladar, o tato, a visão, a audição, o olfato e a intuição, o chamado sexto sentido. Não são livros didáticos e sim de literatura. Tratei o tema do ponto de vista da especulação pessoal, da ficção e da aproximação afetiva. Ao ler os textos, espero que o leitor se dê conta da total abstração que é falar dos sentidos isoladamente. Diante da realidade, sempre nos utilizamos deles de forma misturada.
4 Você acredita que só a Educação mudará os rumos do Brasil?
Quando penso em Educação, às vezes me vem uma imagem: imagine um pai, de nível universtário, que, com o intuito de dominar os filhos, resolva mante-los analfabetos e sem informações. Num mundo civilizado, essas crianças crescerão impotentes, dependentes, irracionais, condenadas aos serviços braçais e mal remunerados, serão eternamente manipuladas e subjugadas. Além disso, quando o tal pai morrer, sua família enfrentará muitos problemas, pois um lider desse tipo não consegue deixar substituto. Imagine agora um outro pai, daqueles que propiciam todo o conhecimento possível aos filhos. O ambiente nessa segunda casa será riquíssimo, exigente, cheio de idéias novas e inesperadas, constante atualização de valores, discussões, trocas de opiniões, debates etc. Uma família assim, composta de pessoas expressivas, informadas, independentes, com senso crítico, que sabem pensar e têm noção de seus direitos e deveres; tem tudo para prosperar e viver bem. Sem dúvida, a grande saída para o Brasil é a Educação, mas é bom lembrar: educar, de verdade, seja no âmbito da família, da escola ou da nação, é sempre uma tarefa que exige coragem. É muito mais fácil lidar com filhos infantilizados do que com filhos exigentes e preparados.
5 Na sua opinião, qual a importância da literatura infantil nesse processo?
Acho a literatura essencial na formação das pessoas. Para mim, ela é uma forma de conhecimento. Uma tentativa de compreender a gente mesmo, a vida e o mundo do ponto de vista da pessoalidade, da subjetividade, dos afetos, da imaginação. Para construir o significado de sua prória vida, a criança precisa tanto ter acesso às informações objetivas, fornecidas pelas ciências via livros didáticos, como às especulaçoes subjetivas, ficcionais e poéticas sobre a existência e o mundo, apresentadas pela literatura e pelas artes em geral. Do ponto de vista do coletivo, todas a crianças juntas, nesse processo, estarão construindo o significado, ou seja, a estrutura e o espírito, da sociedade em que vivem.
6 Em que medida a experiência com os próprios filhos auxilia o escritor no processo de produção?
No meu caso, tenho podido, através de meus filhos, recuperar e mesmo compreender melhor sensações que haviam se perdido dentro de mim; vivências ou sonhos que havia esquecido; certas emoções, certas posturas diante da vida. Tudo isso tem me ajudado na hora de escrever. Conheço, é bom lembrar, escritores que nunca tiveram filhos e nem por isso deixaram de fazer muitíssimo bem o seu trabalho.
7 Existe algum trabalho em andamento que possa divulgar?
Qual o tema abordado? Seguirá os mesmos padrões? Por sorte, o ano de 98 está sendo muito produtivo para mim. Lancei pela Àtica, 19 Poemas Desengonçados, A casa do meu avo e Pobre corinthiano careca. Devo lançar, agora em agosto, O leão Adamastor pela Saraiva e Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas pela Companhia das Letrinhas. Com exceção dos 19 Poemas, são relançamentos, pois todos os livros já haviam sido publicados anteriormente. Estou contente, pois tive oportunidade de rever os textos, acrescentar coisas, aperfeiçoar e fazer correções. Refiz também todos os desenhos. Fora isso, provavelmente até o fim do ano, saí pela Cia das Letras um livro juvenil, Lúcio vira bicho. Trabalhei quase tres anos em cima desse texto. É uma recriação bastante livre de O asno de ouro de Apuleio, obra clássica e maravilhosa do século II. Acho que ficou um trabalho bem legal.