Referência: LEFFA, V. J. Amo a ama mas a ama ama o amo:
brincatividades com trava-línguas. Investigações:
Lingüística e Teoria Literária. Recife: v.17, n.2,
p.243-253, 2004.
Nota: Esta é uma nova
formatação da pesquisa de
Vilson J. Leffa da UCPel, fiel ao conteúdo original, a qual fiz
apenas para facilitar a leitura de estudantes do Ensino Fundamental.
AMO A AMA MAS A AMA AMA O
AMO
BRINCATIVIDADES
COM TRAVA-LÍNGUAS
RESUMO
trava-línguas pode ser definido como
uma expressão ou frase
difícil de pronunciar quando
falada rapidamente, devido a aliteração
ou a repetição de sons
semelhantes . Algumas pessoas acreditam que
o trava-línguas possa ser usado para
desenvolver a habilidade oral e alguns
fonoaudiólogos defendem que ele
é útil na terapia
da fala , um ponto de vista
que não é inteiramente
compartilhado por especialistas na área
do ensino de línguas .
Argumenta-se aqui que o
trava-línguas pode ser usado principalmente
quando se deseja brincar com
a língua , como fazem os poetas
e as crianças . Oferecem-se alguns
exemplos e propõe-se uma metodologia
para sua elaboração . Na medida
em que a maioria dos
trava-línguas só podem ser
pronunciados quando se atribui um
sentido a eles , acredita-se que
seu uso pode contribuir para
conscientizar o aluno da importância
do significado quando se aprende uma língua
.
PALAVRAS-CHAVE: trava-línguas, aliteração
, pronúncia
Introdução
A idéia deste
capítulo surgiu da leitura do
livro de Francisco Gomes de Matos, Criatividade no ensino de
inglês (GOMES DE MATOS, 2004). Parte-se do princípio
de que a língua não existe apenas como um instrumento
para transmitir representações do mundo, influenciar as
outras pessoas ou expressar nossos sentimentos, mas existe
também como um objeto que pode ser usado para brincar. A
língua deixa de ser um meio para se chegar ao objeto, para
tornar-se o próprio objeto, uma massa de moldar que pode ser
manipulada com as mãos e transformada em diferentes
configurações. Não se brinca através da
língua mas com a própria língua.
Há várias maneiras
de se brincar com a
língua, envolvendo, por exemplo, a sintaxe, o léxico e
principalmente a fonologia. Quem mais brinca com a língua
são os poetas e as crianças. Entre os poetas, um dos mais
brincalhões é o francês Verlaine, cujo poema Canção
do outono, em seus primeiros versos, mostra como pôr
música nas palavras:
"Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone"
Recitar o poema Canção
de outono, que
não foi escrito para ser lido em silêncio, mas justamente
para ser recitado em voz alta, é uma experiência sensual
que provoca doces vibrações na língua, com
repercussões que vão da garganta ao céu da boca. A
língua é usada tanto como forma, com ênfase na
materialidade sonora, como conteúdo, com ênfase no
significado, tanto para ser sentida como para ser entendida; sentimento
e razão. O conceito de língua como código une-se
ao conceito de língua como órgão da fala; em
inglês une-se tongue com language. Em português, pela
homografia da palavra, temos uma união mais ambígua:
une-se língua com língua.
Na língua portuguesa,
podemos começar com as
traduções que foram tentadas a partir do poema de
Verlaine. Não brincou apenas o poeta no poema original;
brincaram também os tradutores. Vejamos três exemplos de
traduções de três poetas famosos, ficando apenas
nos primeiros versos:
Alphonsus de Guimaraens:
Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.
Onestaldo de Pennafort:
Os longos sons
dos violões,
pelo outono,
me enchem de dor
e de um langor
de abandono.
Guilherme de Almeida:
Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.
Com melhores resultados do que
o poema traduzido, sem as
restrições impostas pelo significado das palavras que
precisavam ser mantidas do francês, temos em língua
portuguesa o exemplo de Eugênio de Castro. Veja-se, por exemplo,
nos versos abaixo, como o poeta brinca com a musicalidade da frase,
como dá muito mais importância ao som do que ao
significado:
Na
messe, que enlouquece,
estremece a quermesse...
O sol, o celestial girassol,
esmorece...
E as cantilenas de serenos
sons amenos
Fogem fluidas, fluindo
à fina flor dos fenos...
(poema XI).
Entre as crianças, brincar
com a língua,
repetindo seqüências de sons aparentemente
incompreensíveis, é muitas vezes parte importante da
infância. São fórmulas mágicas –
abracadabra, shazam, pirlimpimpim, alakazam, chablem, hocus pocus,
sinsalabim – ou seqüências de sons, incorporando o que na
língua inglesa às vezes é referido como “funology”
(em vez de “phonology”).
Embora não exista uma
maneira única de se
brincar com a língua, o procedimento mais comum é a
repetição. Há várias formas
possíveis de repetição: vogais, consoantes, grupos
consonantais e outros tipos de segmentos. Uma forma de
repetição bastante comum é o trava-línguas.
É especificamente dele que trataremos neste capítulo.
O que é o trava-línguas?
O trava-línguas, em sua
forma mais simples, é
uma sucessão de sons semelhantes, geralmente difíceis de
serem reproduzidos, quando pronunciados rapidamente. Fazem parte das
manifestações populares da cultura das diferentes
línguas e normalmente integram o repertório da literatura
oral das crianças. No folclore da língua portuguesa,
exemplos típicos de trava-línguas são os
seguintes:
Quando a
pia pinga o pinto pia.
O rato roeu
a roupa do rei de Roma e a rainha de raiva rasgou o resto.
Sabia que o sabiá sabia assobiar?
Além de frases, um
trava-línguas pode incorporar segmentos maiores, como
diálogos, por exemplo:
- O seu
Tatá tá?
- Não, o seu Tatá não tá, mas a mulher do
seu Tatá tá. E quando a mulher do seu Tatá
tá, é a mesma coisa que o seu Tatá tá,
tá?
- Tá.
- Qual
é o doce mais doce que o doce de batata doce?
- O doce mais doce que o doce de batata
doce é o doce feito com o doce do doce de batata doce.
Pequenos textos:
O vento
perguntou pro tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo
respondeu pro vento que não tem tempo pra dizer que o tempo do
tempo é o tempo que o tempo tem.
Compadre compre pouca capa parda porque
quem pouca capa parda compra pouca capa parda gasta. Eu pouca capa
parda comprei e pouca capa parda gastei.
São também comuns
as rimas infantis, as chamadas
parlendas, usadas para divertir e criar desafios; vence que for capaz
de pronunciá-las mais rápido sem cometer enganos:
Pardal
pardo
Por que palras?
Palro sempre e palrarei
Porque sou Pardal pardo
Palrador del-rei.
Num ninho de mafagafos
Tinham seis mafagafinhos
Quem os desmafagafizar
Bom desmafagafizador
será.
Podem apresentar também
outros formatos, como a
conjugação do verbo tagarelar no exemplo
abaixo:
- Eu tagarelaria
- Tu tagarelarias
- Ele tagarelaria
- Nós
tagarelaríamos
- Vós
tagarelaríeis
- Eles tagarelariam
Exemplos de trava-línguas
são encontrados nas
culturas de todos os países do mundo e nas mais diferentes
línguas, do ocidente ao oriente, do hemisfério norte ao
hemisfério sul. O site http://www.uebersetzung.at/twister/ cita
exemplos de trava-línguas em mais de 100 línguas
diferentes, incluindo o árabe, o basco, o zulu, o guarani e
até mesmo o esperanto. Como ilustração, seguem
quatro exemplos, dois da língua inglesa e dois da língua
espanhola:
Em
inglês:
Peter Piper
picked a peck of pickled peppers.
A peck of pickled peppers Peter Piper picked.
If Peter Piper picked a peck of pickled peppers,
Where's the peck of pickled peppers Peter Piper picked?
Betty
Botter had some butter,
"But," she said, "this butter's bitter.
If I bake this bitter butter,
it would make my batter bitter.
But a bit of better butter--
that would make my batter better.
Em espanhol:
No me
mires, que miran
que nos miramos,
y verán en tus ojos
que nos amamos.
No nos miremos,
que cuando no nos miren
nos miraremos.
Juan tuvo un tubo,
y el tubo que tuvo se le
rompió,
y para recuperar el tubo que
tuvo,
tuvo que comprar un tubo
igual al tubo que tuvo.
Muitas editoras de livros
infantis possuem em seus
catálogos diversas publicações com exemplos de
trava-línguas, apresentando-os não só para fins de
lazer mas também para melhorar a pronúncia da
língua, modificar sotaque ou corrigir problemas da fala. No
ensino da língua estrangeira, no entanto, os
trava-línguas são geralmente descartados como
pedagogicamente inadequados, não só por apresentarem
seqüências de sons que normalmente não ocorrem na
língua, mas também por sua dificuldade inerente, mesma
para falantes nativos.
Não se propõe aqui
o uso de trava-línguas
como uma metodologia para o ensino da pronúncia, a ser empregado
de modo sistemático. Pensa-se num uso esporádico,
possivelmente com alunos mais jovens, a título de brincadeira.
É possível que a pronúncia repetida possa
contribuir para aumentar o nível de concentração
em aspectos importantes na aprendizagem de uma língua,
incluindo, além da pronúncia, questões de ritmo,
entonação e segmentação. Ainda que num
trava-línguas possa parecer que a ênfase esteja mais na
forma do que no conteúdo, a verdade é que normalmente
não se consegue pronunciar um trava-línguas sem colocar
um sentido na seqüência de sons. Vejamos um exemplo. Sem
colocar sentido na frase, fica muito difícil pronunciar uma
seqüência como
Se o vaivém fosse e viesse o
vaivém ia, mas como o vaivém vai e não vem, assim
o vaivém não vai.
No momento, porém, em que
explicarmos que
“vaivém” aqui significa “serrote” e que a frase foi dita por um
carpinteiro irritado com um colega, que pedia o serrote emprestado e
nunca o devolvia, a repetição da frase fica mais
fácil.
É também importante
considerar, por outro lado,
que o sentido é mais construído do que extraído,
ou seja está mais no leitor ou usuário da língua
do que no texto. Vamos demonstrar isso num exemplo bem simples:
considere-se a seqüência:
Amo a ama, mas a ama ama o amo.
O que realmente significa essa frase? As possibilidades de
leitura são inúmeras. Vejamos apenas duas:
Estou apaixonado pela patroa, mas
a patroa não me ama;
ela ama meu patrão.
Eu, pobre empregado, estou
apaixonado pela criada de meu
patrão, mas ela não me ama; ama o patrão.
Por trás dessas
interpretações, há
também uma visão realista da sociedade com suas grandes
diferenças de classe, onde pessoas trabalham para outras em
funções que poderiam ser exercidas pelo patrão ou
patroa, como a arrumação do guarda-roupa ou a
amamentação dos filhos. Mas há também a
visão romântica de que o amor é mais forte e pode
atravessar as diferenças de classe. O sentido, portanto,
é mais atribuído do que extraído. O texto
não vem prenhe de sentido; vem virgem. Podemos dizer, de maneira
figurada, que nós é que o engravidamos o texto com nossa
leitura. O trava-línguas parece mostrar que o sentido é
atribuído não apenas na leitura do texto, mas
também na sua produção; não toleramos a
falta de sentido quando lemos e não conseguimos falar se
não atribuímos sentido ao que dizemos.
Como criar um trava-línguas?
Considerando que o
trava-línguas é normalmente
uma repetição de sons semelhantes, geralmente uma
consoante, criar um trava-línguas é um processo bastante
simples: pega-se uma consoante e contrapõe-se essa consoante a
cada uma das vogais da língua, criando pelo menos duas
sílabas do tipo CVCV. Considerando, por exemplo, a consoante/b/,
teríamos, numa primeira etapa:
baba, beba, Biba, boba, Buba
Nessas cinco
seqüências de duas sílabas
(apresentadas aqui de maneira simplificada, ignorando, por exemplo as
vogais abertas e fechadas), e usando apenas a bilabial sonora /b/,
já podemos aproveitar três seqüências: baba,
beba e boba. Não é muito mas
já podemos construir frases simples como:
A boba
baba.
Beba a
baba, boba.
A baba baba
a boba.
Beba a
baba, boba Biba.
A Biba baba
e o Buba baba.
Numa segunda etapa, mexendo com a segunda silaba de cada
segmento, já podemos acrescentar palavras como bobo,
bebe, bebeu, babou. Isso permite
construções como:
O
bobo bebeu a
baba.
A
boba bebeu a
baba.
O
bobo babou a boba e a boba babou o bobo.
Usando um pouco de liberdade e
introduzindo a
preposição de, já podemos fazer uma
frase mais complexa como
A
baba do bobo babou a boba e a baba da boba babou o bobo.
Embora, aparentemente, podemos
ter a impressão que
estamos apenas operando no nível da “bobice”, é
importante destacar que se opera também com recursos
extremamente limitados. Produzir frases com tantas
restrições pode servir como um ensaio para desenvolver a
capacidade de ser criativo, e até brincar, em
circunstâncias de extrema penúria lingüística,
quando temos que interagir, por exemplo, com falantes de uma
língua que mal conhecemos. É, a meu ver, exatamente como
fazem as crianças depois de algumas semanas num país
estrangeiro: não se deixam abater e conseguem brincar com as
outras de igual para igual, apesar do pouco conhecimento que ainda
têm da língua.
O mesmo processo de
criação de frases pode ser
usado com as demais consoantes: /k/, /d/, /f/, etc. Vejamos alguns
exemplos, seguindo a ordem do alfabeto, sem maiores
preocupações com a originalidade da frase, mas apenas
seguindo o algoritmo proposto, em sua simplicidade operacional:
Coca com
cuca, caqui e coco
é cacaca.
O dado dado
ao doido doeu no dedo
do doido e o doido, de dedo doído, doou o dado à
Dadá
O
fofão foi afofar a fofa e
a fofa foi afofar o fofão.
A Gigi
já jejuou hoje e o
João enjoou e jejuou junto.
O gago
gagá aguou o
gogó da águia com água.
A Lola
lelé lia ali
à luz da lua e a Lulu aluada lia lá.
A
múmia má mima o
mimo mau.
Nina nana o
nenê nos
ananás.
O papa papa
a papa em pé e
o papão papa a papa com a pá.
Era a arara
aérea que arou
a área na hora
A rã
erra e rói na
rinha, o réu erra e urra na raia, o rei erra e ri na rua.
A
sábia sabiá sabia
assobiar, mas o sóbrio sabiá só sabia assoprar.
Tatá tatuou o tatu.
O
mesmo algoritmo pode ser repetido com as outras consoantes, grupos
consonantais, vogais iniciais, etc. Vejamos alguns exemplos combinando
seqüências de duas consoantes:
A
moça amassou o mousse e o
moço amassou a massa.
O pato
pintou a pata da pata e a
pata, de pata pintada, pintou a pata do pato.
A melão melou a mala, a
mala melou a mula e a mula melou a mola.
Passado
o alfabeto com todas as consoantes, podem-se tentar encontros
consonantais:
Apronte a
prata e com a prata
pronta prateie o prato preto.
Trate trinta e três trutas e
traga três das trinta e três trutas tratadas.
Conclusão
Não estou propondo aqui,
nem de longe, como já
disse, uma abordagem de ensino de línguas com ênfase no
uso do trava-línguas. O que defendo é uma abordagem
lúdica, sendo o trava-línguas uma das tantas maneiras de
se brincar com a língua. A principal vantagem, a meu ver,
é que ao fazer a união da
língua-órgão com a língua-sistema, estamos
fazendo a fusão do sentimento com a razão, do sujeito com
o objeto, do corpo com a mente. Passamos a ver não apenas a
língua como um todo, mas também o próprio sujeito
que a usa.
Entendo que indutivamente o
trava-línguas tem a
propriedade de mostrar a importância do significado na fala;
é praticamente impossível pronunciar um
trava-línguas sem uma concentração intensa no que
se está dizendo. Eu, pelo menos não consigo repetir cinco
vezes “Quando a pia pinga o pinto pia” sem prestar muita
atenção no significado da frase e até criando uma
imagem mental do pinto embaixo da pia gotejante.
Já disse alguém que
o homem não tolera a
falta de sentido. Frederick Bartlett, no início do século
XX, ao criticar os experimentos de Hermann Ebbinghaus, no século
XIX, com o uso de sílabas sem sentido para tentar chegar
à memória pura, sem contaminação do
significado, já afirmava que não era possível
garantir que os sujeitos dos experimentos não davam significado
às sílabas supostamente sem significado. Em outras
palavras, os sujeitos mais espertos poderiam estar criando um
significado para lembrar melhor o que deveriam repetir, e de maneira
estranha, corrompendo a experiência de Ebbinghaus.
Experiências com disléxicos, afásicos,
crianças e mesmo leitores fluentes mostram que todos temos
problemas em memorizar e repetir seqüências de palavras sem
sentido. O trava-línguas pode mostrar, na prática e
brincando, a importância de se ancorar no significado quando se
fala.
Referência:
Gomes de Matos, Francisco. 2004. Criatividade no
Ensino no
Inglês : A resource book for Brazilian teachers of English.
São Paulo: Disal.
Fonte:
http://www.leffa.pro.br/trabalhos/trava_linguas.htm
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