UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO



um estudo de caso em uma proposta curricular e interdisciplinar
na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre



Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Claudio Roberto Baptista

 

LENISE HENZ CAÇULA PISTÓIA

 

Porto Alegre, dezembro de 2001.

 

 

 

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO – NA PUBLICAÇÃO (CIP)

 

P679d Pistóia, Lenise Henz Caçula

(Des)vantagem e aprendizagem : um estudo de caso em uma

proposta curricular e interdisciplinar na Rede Municipal de Ensino

de Porto Alegre / Lenise Henz Caçula Pistóia. - Porto Alegre :

UFRGS, 2001.

f.

 

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande

do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em

Educação, Porto Alegre, BR-RS, 2001.

 

 

Proposta curricular - Inclusão escolar - Ensino público

municipal - Porto Alegre. 2. Dificuldades de aprendizagem -

Turmas de progressão. I. Título.

 

 

CDU – 376.4.043(816.5) ____________________________________________________________

Bibliotecária: Jacira Gil Bernardes – CRB-10/463

 

 

 

 

AGRADECIMENTOS

Ao prof. Dr. Claudio Roberto Baptista pelo acompanhamento constante e rigoroso olhar.

 

Aos professores e colegas do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pelos desafios provocados que ampliaram meus horizontes teóricos.

 

À minha família pela compreensão, amor e paciência em suportar as infindáveis horas em que permaneci envolvida no processo de elaboração da pesquisa.

 

Aos professores e professoras da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo que atentamente colocaram-se à disposição da pesquisa.

 

Aos alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo pela confiança e efetiva participação.

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

RESUMO 8

ABSTRACT 9

1 INTRODUÇÃO 10

Capítulo 2 A EDUCAÇÃO INCLUSIVA 15

2.1 Resgate de Dados Históricos 16

2.2 A Conferência Mundial sobre Educação para Todos 19

2.3 A Conferência Mundial de Educação Especial 21

2.4 Integração e/ou Inclusão 23

2.5 O Novo Paradigma: implicações teórico-metodológicas da educação

inclusiva 26

2.6 De portadores de Deficiência a Aluno em Situação de Desvantagem 28

Capítulo 3 O PROJETO ESCOLA CIDADÃ NO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE 31

3.1 O 1º Congresso Constituinte Escolar 31

3.2 O 2º Congresso Municipal de Educação 36

3.3 Os Ciclos de Formação 37

3.4 A Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo 43

3.5 A Turma de Progressão 48

Capítulo 4 O COMPLEXO TEMÁTICO 51

4.1 Os Referenciais Conceituais do Complexo Temático 52

4.1.1 O Pensamento de Pistrak e os Complexos 52

4.1.2 O Pensamento de Paulo Freire e os Temas Geradores 54

4.2 A Concepção de Currículo 56

4.3 A Concepção de Interdisciplinaridade 59

4.4 O Complexo Temático na Escola Cidadã 62

4.4.1 O Conceito de Campo Conceitual 65

4.4 As Fontes Diretrizes do Currículo na Escola Cidadã 67

4.4.1 A Fonte Diretriz Sócio-Antropológica 68

4.4.2 A Fonte Diretriz Sócio-Psicopedagógica 69

4.4.3 A Fonte Diretriz Epistemológica 70

4.4.4 A Fonte Diretriz Filosófica 71

4.5 O Decálogo de Elaboração do Complexo Temático 72

Capítulo 5 DO PENSAMENTO SISTÊMICO À TEORIA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO: REPENSANDO CONCEITOS DE APRENDIZAGEM 75

5.1 O Pensamento Sistêmico 75

5.1.1 Os Primórdios da Teorização Sistêmica 77

5.2 As Contribuições da Cibernética 78

5.2.1 A Primeira "Revolução Cognitiva" 80

5.2.2 A Segunda "Revolução Cognitiva" 83

5.3 As Teorias de Auto-organização 86

5.4 A Teoria Autopoiética 88

5.4.1 O Domínio Cognitivo na Teoria Autopoiética 91

5.4.2 O Surgimento da Linguagem 93

5.5 A Rede de Interações 96

Capítulo 6 A PESQUISA 99

6.1 Retomando o Problema e as Questões de Pesquisa 99

6.2 A Pesquisa Qualitativa 101

6.3 O Estudo de Caso 104

6.4 O Cenário de Investigação 105

6.5 A Coleta de Dados 106

6.6 Os Sujeitos da Pesquisa 108

Capítulo 7 O COMPLEXO TEMÁTICO "CONVIVÊNCIA" NA ESCOLA MONTE CRISTO 109

7.1 Apresentação do Complexo Temático "Convivência" 109

Capítulo 8 A TURMA DE ALUNOS NO CONTEXTO DA PESQUISA 116

8.1 A Turma BP3 117

8.2 O Processo de Transformação de Turma BP3 para Turma B16 118

8.3 Os Alunos Selecionados para a Pesquisa e a Atuação da Pesquisadora 121

Capítulo 9 A APRENDIZAGEM DOS ALUNOS NO CONTEXTO DA PESQUISA 125

9.1 João Paulo 127

9.2 Carlos Antônio 133

9.3 Maria Eduarda 140

9.4 Pedro 146

9.5 Tatiana 152

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS 157

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 173

ANEXOS 186

Anexo 1 Transparência sobre o Complexo Temático "Convivência" 186

Anexo 2 Teia Temática e Princípios por Área do Conhecimento 187

Anexo 3 1º Plano Metodológico do Complexo Temático do 1º Ano do 2º Ciclo 188

Anexo 4 2º Plano Metodológico do Complexo Temático do 1º Ano do 2º Ciclo 189

Anexo 5 Reportagem Exibida no Jornal Zero Hora 190

Anexo 6 Trabalho de Aluno Realizado no Ambiente Informatizado 191

Anexo 7 Convite Confeccionado pela Aluna Tatiana 192

Anexo 8 Registro Escrito do Trabalho de Final de Ano do Aluno João Paulo 193

Anexo 9 Registro Escrito do Trabalho de Final de Ano do Aluno Carlos Antônio 194

Anexo 10 Registro Escrito do Trabalho de Final de Ano da Aluna Maria Eduarda 195

Anexo 11 Registro Escrito do Trabalho de Final de Ano do Aluno Pedro 196

Anexo 12 Registro Escrito do Trabalho de Final de Ano da Aluna Tatiana 197

 

 

 

RESUMO

 

O presente texto tem como objetivo apresentar as reflexões de um processo de pesquisa realizado em uma escola pública, pertencente à Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, na qual atuo como professora, com uma turma de alunos constituída por sujeitos em situação de desvantagem. A denominação "alunos em situação de desvantagem" apresenta-se em sintonia com o conceito de necessidades educativas especiais e com a perspectiva representada pela chamada educação inclusiva. Utilizou-se a metodologia de estudo de caso para a análise da evolução dos alunos, ao longo de um ano, com destaque para a evolução identificada no âmbito das interações sociais e de suas dificuldades para a aprendizagem. Nessa perspectiva, mereceu destaque a proposta curricular chamada de "escola por ciclos de formação" e a forma como eram utilizados os espaços que garantiam a flexibilização no atendimento a alunos com defasagem entre idade, escolaridade e aprendizagem, além da existência de turmas de progressão. Foram analisados os efeitos da proposta interdisciplinar representada pela opção metodológica chamada de "complexo temático" que, ao criar pontos de contato com as questões de pesquisa levantadas, suscitava novas possibilidades para a aprendizagem dos sujeitos envolvidos. O processo de investigação contou ainda com a contribuição das perspectivas sistêmicas de análise teórica que viabilizaram o aprofundamento da proposta pedagógica enfocada no presente estudo. O acolhimento dos alunos em situação de desvantagem apontava para as transformações pretendidas no fazer pedagógico. As alternativas utilizadas buscavam evidenciar o papel das interações estabelecidas no espaço da sala de aula para a conquista de novas aprendizagens dos alunos participantes no processo de pesquisa. Com relação aos resultados obtidos, destaca-se o papel preponderante da participação dos sujeitos envolvidos em situações que destacavam a participação e a resolução de questões desafiadoras apontadas no cotidiano, a capacidade de reação diante do inusitado, assim como sinais de ampliação da linguagem na evidência das interações recorrentes.

 

 

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ABSTRACT

The purpose of this work is to present the conclusions of a research process accomplished in a public school, that pertains to the municipal education department of Porto Alegre, where I worked as a teacher, with a class of students formed by subjects under the situation of disadvantage. The expression "students under a situation of disadvantage" fits the concept of special education necessities and the perspective of inclusive education. We used the methodology of case study to evaluate the development of the students during the year, focusing on the evolution of social interactions and learning barriers. In this perspective, the concept of "school by graduation cycles" is remarkable by the way the spaces were utilized in order to customize student care at different ages, graduation and learning capabilities. The existing progression classes also deserve special attention. We evaluated the effects of the interdisciplinary concept represented by the methodological option called "thematic complex" that, by identifying itself with the research proposals, stimulated new opportunities to the learning process of the related subjects. The investigation process used the contribution of systematic perspectives of theoretical analysis that detailed the pedagogical approach focused in this study. The acceptance of students under the situation of disadvantage pushed the transformation of the pedagogical approach. The used alternatives had the purpose of highlighting the role of interaction established within the classroom space to conquer new learning elements by the participant students of the research process. Among the achieved results, we see the predominant role of the subjects compromised in situations that required the participation and resolution of challenging issues of the quotidian, the ability to react against the unpredictable, as well as the signs of language improvement under the evidence of recurrent interactions.

 

 

 

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1 Introdução

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades."

(Luís Vaz de Camões, 1997, p.42)

 

 

A atuação como professora em classes de alfabetização impunha-me a necessidade de refletir constantemente sobre aspectos relacionados a aprendizagem dos alunos atendidos. Nas situações cotidianas deparava-me com sujeitos oriundos de classes populares, cujas histórias de vida colocavam em evidência as inúmeras adversidades enfrentadas cotidianamente. Uma das faces dessas dificuldades manifestava-se nas precárias condições, apresentadas por certos alunos, quanto ao atendimento das necessidades básicas, tais como: alimentação, moradia e higiene, refletidas na apatia destes alunos em sala de aula. Como professora de uma rede pública de ensino – Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre – atuando em escola de periferia, identifico que uma parcela representativa dos alunos vem para escola mal agasalhada e sem material escolar. Essas crianças faltam freqüentemente porque devem cuidar de irmãos menores ou mesmo contribuir com sua força de trabalho para o sustento da família. As desvantagens sócio-econômicas apresentadas pelos alunos têm sido acrescidas de outras limitações que têm integrado as características dos alunos do ensino comum. Nos últimos anos, tem aumentado o percentual de alunos que apresentam dificuldades de ordem emocional, motora, cognitiva ou neurológica, além dos fatores sociais ligados ao meio em que estão inseridos. No plano de minha ação como professora, percebo que há muitos motivos para que os alunos tenham dificuldade para aprender e, por isso, entendo que é preciso investigar detidamente os fatores que levam a esse quadro. Percebo que cada aluno que está sob minha responsabilidade exige ações que redimensionem o fazer pedagógico. A chegada dos "alunos diferentes" na escola tem sido apoiada pela atual legislação educacional, mas agora é preciso conhecê-los, compreendê-los para assumir um compromisso coletivo entre a escola e a sociedade como um todo.

A Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre tem desenvolvido um projeto político-pedagógico que procura atender necessidades dos alunos em condições de desvantagem por meio de ações que valorizem a participação e que provoque um redimensionamento curricular e metodológico capaz de ligar a sala de aula à escola e ao contexto social mais amplo, procurando o estreitamento das parcerias e o aproveitamento dos recursos disponíveis na comunidade. Este projeto tem apresentado alternativas práticas para as atuais diretrizes legais que tendem a garantir o atendimento aos alunos "diferentes" no ensino comum.

O espaço de sala de aula, no qual atuo como educadora, constitui-se em um universo rico e abrangente de situações onde afetos, sentimentos, expectativas e desejos de cada aluno são apresentados aos demais, criando situações peculiares, mas que guardam entre si proximidade por envolverem estes sujeitos em sua integralidade. O planejamento pedagógico exige intervenções diferenciadas que permitam o surgimento de situações inéditas de contato com as questões de conhecimento e que possam envolvê-los de maneira intensa, levando a reelaboração destes conhecimentos.

Ao educador é exigida uma capacidade articuladora que propicie o avanço da aprendizagem dos alunos e que mantenha a sintonia com as ações de um projeto pedagógico para a instituição e para a rede de ensino. Emergem, assim, as inquietações que geravam novos questionamentos relacionados com a importância de uma investigação aprofundada capaz de envolver minhas indagações, e um projeto político pedagógico do qual faço parte. O Projeto Escola Cidadã buscava a participação popular nas mais variadas formas, atingindo desde os setores básicos de organização comunitária, como a habitação e o saneamento básico até a cultura e demais manifestações artísticas. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo, por sua vez, iniciou suas atividades como a primeira escola da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre a implementar a proposta de organização curricular de ciclos de formação, tornando-se uma escola diferenciada em que as iniciativas de organização curricular estavam balizadas por iniciativas inovadoras na construção de relações de aprendizagem dos alunos.

Portanto, a partir das inquietações que o ambiente de sala de aula suscita, decidi investir esforços e dedicar minha atenção para uma investigação que pudesse apontar caminhos possíveis para o avanço destes alunos. Dessa forma, os papéis de professora e pesquisadora apontavam para funções específicas, mas que poderiam ser exercidas no mesmo espaço institucional, de forma concomitante.

O foco de abrangência proposto nesta pesquisa foi se configurando a partir destas primeiras reflexões que tinham como preocupação principal a aprendizagem dos alunos, especificamente daqueles em situação de desvantagem. O interesse por essa temática estava diretamente relacionado às possibilidades de efetivação de uma investigação que permitisse aprofundar o entendimento dos processos de aprendizagem desses sujeitos e sua relação com o conhecimento.

A pesquisa de campo foi realizada na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo, em uma classe que concentrava alunos com defasagem na relação entre idade cronológica e escolarização (turma de progressão). A investigação analisa as transformações ocorridas nessa classe, a relação entre as ações de sala de aula e o projeto implementado na escola, além de colocar em evidência percursos singulares de alguns alunos.

A delimitação do universo temático foi fator determinante, quanto ao tipo de pesquisa a ser desenvolvida e exigiu o aprofundamento de uma série de características a respeito da proposta político-pedagógica desenvolvida nesta escola, com destaque para o esquema curricular denominado de "complexo temático". Nessa perspectiva, enfatiza-se a atuação de forma interdisciplinar, garantindo a efetivação de um currículo em que todas as áreas do conhecimento são desenvolvidas com base na noção de complementaridade e visando romper com a hierarquização entre as áreas. As relações entre a ação interdisciplinar e aprendizagem são, portanto, alvo da presente investigação.

O enfoque da investigação permaneceu vinculado ao espaço da sala de aula, a situações que caracterizariam as relações dos alunos com o conhecimento e o diálogo entre educador e educando na relação pedagógica e, por isso, o estudo de caso mostrou-se como a opção mais indicada para o acompanhamento de uma classe durante um ano. Houve, ainda, o destaque de cinco dos sujeitos envolvidos, no sentido de ampliar a compreensão entre a evolução do grupo e as singularidades de cada um.

As questões de pesquisa apresentadas estiveram relacionadas ao possível estabelecimento de relações entre os conhecimentos cotidianos e as necessidades, além dos interesses do conjunto de alunos selecionados para a pesquisa. Além disso, procurou-se investigar o alcance que a chamada "rede de interações" atingiu e como se efetivava no cotidiano escolar favorecendo as trocas comunicativas entre os alunos. Dessa forma, o uso da linguagem foi relacionado com o processo de aprendizagem dos alunos para vislumbrar novas possibilidades de avanços. Junto a isto, procurou-se verificar a existência do chamado "espaço contratual" entre os professores e a turma de alunos que permitisse encaminhar os esforços pedagógicos na direção de melhores oportunidades de aprendizagem para os alunos selecionados na pesquisa. Tais fenômenos são analisados com o apoio teórico que teve como pontos basilares a abordagem sistêmica, as teorias de auto-organização e as chamadas "revoluções cognitivas" que levaram a uma nova compreensão sobre a natureza do conhecimento humano e dos "processos mentais". A possibilidade de beneficiar-se dos estudos de teóricos multidisciplinares, ligados a várias áreas do conhecimento, tais como a biologia, sociologia, física e antropologia, permitiu o aprofundamento das questões propostas na direção da teoria autopoiética. Além destas abordagens, buscou-se investigar a educação popular e a educação especial, com destaque para a chamada educação inclusiva.

A escolha do título "(Des) Vantagem e Aprendizagem: um estudo de caso em uma proposta curricular e interdisciplinar na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre" foi a tentativa de anunciar a ênfase pelo estudo direcionado às questões de aprendizagem de alunos com necessidades educativas especiais no contexto de uma escola do ensino comum. Entende-se por esses, aqueles sujeitos que encontram-se de alguma forma impedidos de avançarem em suas aprendizagens e, portanto, exigindo um olhar diferenciado, bem como a busca de alternativas capazes de permitir-lhes avanços significativos. Dessa forma, o aprofundamento de questões relacionadas à educação inclusiva recebeu um destaque especial em um capítulo onde o tema foi apresentado a partir de dados históricos e da exposição de importantes documentos internacionais, além da exposição dos pressupostos teóricos pertinentes ao tema da integração e inclusão.

 

 

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2 A EDUCAÇÃO INCLUSIVA

 

 

A infância e a adolescência são mais do que as novas gerações que conduzimos. Nos conduzem. Nos interrogam, surpreendem e desarticulam nossas velhas respostas e concepções pedagógicas. Desarticulam traços tão tranqüilos de nosso ofício. Se o convívio pedagógico com toda a infância e adolescência é surpreendente e questionador de nosso saber-fazer de mestres, a infância excluída, negada, é ainda mais surpreendente. Ela rebrota ainda que podada e negada.

(Miguel Arroyo, 2000, p.251)

 

 

Um dos temas que mais têm gerado discussão, quando se pensa em "aprendizagem para todos", é a chamada educação inclusiva. Apesar de associada diretamente à educação especial como campo de conhecimento, o mais importante é poder elucidar seus pressupostos e, através da análise de sua trajetória teórico-conceitual, compreender a evolução e abrangência desta concepção nos contextos educativos que ora se apresentam.

 

A apregoada educação para todos ultrapassou os limites da educação especial, forçada por transformações sociais e políticas que colocaram os movimentos em defesa dos direitos humanos e de melhores condições de vida no planeta como as prioridades de todos os povos, independente das características geográficas e de peculiaridades étnico-culturais regionais. A proposição de integrar os alunos com necessidades educativas especiais no ensino comum está caracterizada por paradigmas que vêm sendo revisitados e atualizados, atingindo as discussões desencadeadas no interior das escolas(Santos, 1998). Nessa direção, proporcionar oportunidades diferenciadas de produzir conhecimento nos ambientes educativos passou a ser encarada como uma prática vinculada aos princípios de uma educação que se propõe como inclusiva. As escolas passam a se preocupar em estabelecer diretrizes que fundamentem sua ação pedagógica em práticas e sistemas de avaliação coerentes com o atendimento de todos os alunos, independentemente de suas desvantagens ou deficiências. Além disso, procuram adaptar seus currículos na busca de novas abordagens, obedecendo aos diferentes ritmos e características de aprendizagem de seus alunos.

 

 

2.1 Resgate de Dados Históricos

 

 

Desde o início do século XX, observa-se que os conceitos de deficiência, diminuição ou handicap tem sido associados às pessoas com deficiência. Apesar da variedade conceitual, tem havido o predomínio na identificação de causas fundamentalmente orgânicas, geradas no início do desenvolvimento do sujeito, sendo dificilmente modificadas posteriormente (Marchesi e Martín, 1995).

 

O conhecimento clínico-pedagógico prestou-se à categorização desses sujeitos, sendo que as décadas compreendidas entre 1950 e 1970 foram marcadas pela ênfase em "ações classificadoras" que estabeleciam os limites da suposta "normalidade". Os parâmetros de "normalidade" favoreciam a exclusão ao delimitarem o grau de aceitabilidade que constituía a fronteira das características "anormais". Na maioria das vezes, os sujeitos com deficiências ou com as chamadas "condutas típicas" sequer tinham a possibilidade de ir além de seus domicílios. Acreditava-se que seria inviável o atendimento integrado entre os sujeitos com deficiência e aqueles considerados "normais". O movimento para a consolidação de seu papel social dependia, em grande medida, do empenho e da capacidade pessoal em enfrentar as adversidades, com poucas articulações em espaços de participação comunitária.

 

A reflexão sobre uma nova forma de encarar a educação como um processo mais abrangente na sociedade capaz de aceitar as especificidades de cada um, apesar de suas características diferenciadas partiu de um movimento planetário, intercontinental que atingiu todos os campos do saber e que passou, num primeiro plano, a exigir uma visão mais abrangente e complexa de perceber as relações do ser humano com o meio. Assim, passou-se a uma revisão nas condições enfrentadas pela maioria dos sujeitos, que por suas condições biopsicossociais se encontravam à margem da sociedade, impossibilitados de participarem plenamente das diferentes esferas da vida social.

 

Os organismos internacionais, por sua vez, passaram a apregoar a busca pelo desenvolvimento humano sustentável como a alternativa mais razoável para garantir a continuidade da existência do homem no planeta. A partir dessas proposições, passou-se a perseguir nos espaços escolares os ideais de uma educação ambiental que levasse os alunos a refletirem e agirem, baseados numa ética da preservação e respeito a todos os seres vivos. Nessa perspectiva, Gadotti aponta:

 

Na era do conhecimento, a pedagogia tornou-se a ciência mais importante porque ela objetiva justamente promover aprendizagem. A era do conhecimento é também a era da sociedade "aprendente": todos tornaram-se aprendizes. A pedagogia não está mais centrada na didática, em como ensinar, mas na ética e na filosofia, que se pergunta como devemos ser para aprender e o que precisamos saber para aprender a ensinar. (GADOTTI, 2000, p.45 e 46)

 

Com relação ao movimento de integração, por volta dos anos 70, ampliam-se as propostas de atendimento relacionados a diversas áreas da saúde e educação. Nesse momento, a integração era concebida como inserção de crianças e jovens com deficiência. Os mais "aptos" eram encaminhados às escolas comuns, geralmente através das classes especiais. Os alunos que apresentavam maior comprometimento/gravidade de suas limitações eram encaminhados às escolas especiais. Este sistema - inserção em múltiplas alternativas - é denominado "sistema em cascata" (Mantoan, 1998a), que se constitui em uma forma condicional de inserção em que vai depender do aluno, isto é, do nível de sua capacidade de adaptação às opções do sistema escolar, a sua integração, seja no ensino comum, em uma classe especial ou mesmo em instituições especializadas.

 

Após os anos 90, amplia-se a discussão teórica relativa à inclusão ou educação inclusiva. Há autores como Werneck (1997) que, a respeito dos conceitos de inclusão e integração, procuram considerá-los de forma diferenciada, procurando marcar as distinções entre um e outro, ressaltando os avanços teóricos. A integração, enquanto paradigma, apontava para uma pluralidade de alternativas de atendimento que dependeriam das características das crianças com dependência. Essa pluralidade era associada à concepção de que o aluno deveria adaptar-se às diferentes situações de ensino. Portanto, pouco se exigia da escola em termos de flexibilização do atendimento. A inclusão coloca a incorporação dessas crianças pelo ensino regular sob outra ótica, reconhecendo a existência das mais variadas diferenças e exigindo forte transformação dos sistemas de ensino. A partir do reconhecimento destas "diferenças", a inclusão assume a dimensão de políticas aplicadas nos sistemas de ensino que possibilitam a inclusão gradativa, contínua, sistemática e planejada de crianças com necessidades educativas especiais. Cumpre destacar as considerações apontadas por Bueno:

 

Mas a consecução do princípio da educação inclusiva, por sua vez, não se efetuará por decreto,(...)

Deve ser gradativa porque é preciso que tanto os sistemas de educação especial, como os do ensino regular possam ir se adequando à nova ordem, construindo práticas políticas, institucionais e pedagógicas que garantam o incremento da qualidade do ensino que envolve não só alunos com necessidades educativas especiais, mas todo o alunado do ensino regular. (BUENO, 1999b, p.25)

 

Santos e Carvalho (1999) consideram a inclusão em educação uma tendência que visa à eliminação de fatores fundamentais, que podem afetar a participação do aluno na escola, caso não sejam atendidos, tais como: a falta de acesso à educação, falta de mecanismos que assegurem sua permanência na escola, evasão e repetência, sistemas rígidos de avaliação de desempenho acadêmico e rendimento escolar, só para mencionar os mais recorrentes em fóruns ocorridos recentemente sobre o assunto. A este respeito, Santos e Carvalho consideram a inclusão como:

 

...processos que aumentem a participação e reduzam exclusão de alunos das culturas, do currículo e de comunidades em centros locais de aprendizagem. Esta perspectiva implica em compreender a inclusão com um processo permanente e dependente de contínuo desenvolvimento pedagógico e organizacional dentro das escolas regulares, ao invés de vê-la como uma simples mudança sistêmica nas redes de ensino. (SANTOS; CARVALHO, 1999, p.50)

 

A partir da compreensão sobre o longo processo de luta pela integração e inclusão, há pressupostos que vêm sendo constantemente reformulados. Dessa forma, a adoção de termos capazes de refletir essa nova concepção (do indivíduo para os serviços de apoio, para a sala de aula, para uma visão multidimensional) constitui-se em um processo pertinente que envolve o estudo de todo o contexto em que a escola e esses alunos encontram-se envolvidos.

 

 

2.2. A Conferência Mundial sobre a "Educação para Todos"

 

 

Em março de 1990, em Jomtien, Tailândia, foi realizada a Conferência Mundial sobre a "Educação para Todos". Desse evento participaram representantes de governos, agências internacionais, organismos não-governamentais, associações profissionais e personalidades de destaque no âmbito educativo vindos do mundo inteiro. Os 155 (cento e cinqüenta e cinco) países representados assinaram uma Declaração Mundial e um Marco de Ação, comprometendo-se a garantir uma "educação básica de qualidade" para crianças, jovens e adultos. Quatro organismos internacionais patrocinaram a Conferência, formaram uma Comissão Interagencial e estiveram envolvidos no acompanhamento dessa iniciativa: a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e o Banco Mundial.

 

Durante a década de 90, a Educação para Todos serviu de marco para o delineamento e a execução de políticas educativas no mundo inteiro, principalmente em educação básica. Segundo Torres:

 

Jomtien não foi só uma tentativa de garantir educação básica- satisfação de necessidades básicas de aprendizagem- para a população mundial, mas uma tentativa de renovar a visão e o alcance dessa educação básica. (TORRES, 2001, p.65)

 

Convém destacar a ampliação do conceito de educação básica, indo além da educação primária e da instituição escolar. Para a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem intervêm, além da escola, outras instâncias educativas e ambientes de aprendizagem, tais como a família, a comunidade e os meios de comunicação. Na Conferência de Jomtien, a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem de todos, parte do reconhecimento de que os sujeitos apresentam necessidades de aprendizagem diferentes, exigindo conteúdos, métodos e modalidades de ensino e aprendizagem que atendam a essas características pessoais e de desenvolvimento.

 

Torres (op. cit.) afirma que a visão ampliada de educação básica acordada em Jomtien - eixo da proposta, seu aspecto de maior novidade e mais potencialmente transformador - não se entranhou nas formulações, nem nas ações das políticas e reformas educativas impulsionadas na década de 90. Dentre os fatores que levaram a este quadro a referida autora destaca a ansiedade por mostrar resultados, evidente nas ações de muitos países participantes, gerando descuido com os processos e as estratégias, na lógica de curto prazo. A corrida pelos números fez com que se perdesse a qualidade, reduzindo universalização ao acesso, qualidade à eficiência, aprendizagem a rendimento escolar, visão ampliada ao aumento de anos de estudos, por fim, desvalorizando a importância de se explorar e de se experimentar.

 

Apesar das dificuldades encontradas para a implementação das propostas da Conferência de Jomtien, principalmente nos chamados países em desenvolvimento, as deliberações que foram ali tomadas repercutiram de forma intensa nas políticas educacionais dos países envolvidos, assim como serviram de referencial para a elaboração de outros documentos importantes que viriam difundir os princípios ali defendidos.

 

 

2.3 A Conferência Mundial de Educação Especial

 

 

Muitos encontros internacionais sucederam a Conferência de Jomtien. Dentre esses, destaca-se a Conferência Mundial de Educação Especial, realizada entre os dias 7 e 10 de junho de 1994, em Salamanca na Espanha. Na oportunidade, os delegados representando 88 (oitenta e oito) países e 25 (vinte e cinco) organizações internacionais, em assembléia, reafirmaram o compromisso para com a Educação para Todos, reconhecendo a necessidade e a urgência do providenciamento de educação para as crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais dentro do ensino comum de ensino. A proposta educacional, contida na Declaração, está baseada no princípio da integração que se renova e avança em linhas de ações que apontam para um novo paradigma: a educação inclusiva. Este paradigma tem como efeito a defesa da participação de crianças e adolescentes com necessidades educativas especiais, na qualidade de alunos regulares na rede comum de ensino. Tais princípios encontram-se explicitados na Declaração, da seguinte forma:

 

2. Acreditamos e proclamamos que:

toda criança possui características, interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem que são únicas;

aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades,(...) (BRASIL, 1994, p.2)

 

O movimento apresentado na Declaração de Salamanca propõe que as escolas inclusivas possam contribuir no provimento de um ambiente favorável à conquista de igualdade de oportunidades e participação total dos professores e demais profissionais que atuam na escola, junto às famílias dos alunos, voluntários e lideranças das comunidades em que estão inseridos, além de toda gama de serviços públicos disponíveis que possam se traduzir em benefícios nas aprendizagens destes alunos. A participação é entendida como componente essencial para que se possa propor percursos de aprendizagem/interação que favoreçam o exercício da cidadania. Dessa forma, atinge-se a chamada "...promoção da genuína equalização de oportunidades..." que representa tendência apontada, na Declaração, em relação às políticas sociais.

 

A proposição e uma práxis em educação especial está redimensionada no documento, ao anunciar que uma pedagogia centrada no aluno, como sujeito em desenvolvimento, pressupõe o reconhecimento das diferenças existentes entre cada um e que a aprendizagem deve estar adaptada ao aluno. As diferenças humanas estão assinaladas, quando é destacada a premissa que todas as crianças devem aprender juntas, "sempre que possível", independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que possam apresentar. Apesar da controvérsia que pode ser gerada na expressão "sempre que possível", a Declaração propõe que a escolarização de crianças, jovens adultos deva ocorrer no ensino comum:

 

4. Educação Especial incorpora os mais que comprovados princípios de uma forte pedagogia da qual todas as crianças possam se beneficiar. Ela assume que as diferenças humanas são normais e que, em consonância com a aprendizagem de ser adaptada às necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança às assunções pré-concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem. Uma pedagogia centrada na criança é beneficial a todos os estudantes e, consequentemente, à sociedade como um todo. (BRASIL, 1994, p.4):

 

A educação especial é conclamada a atuar em uma nova estrutura de ação. As classes e as escolas especiais passam a ser consideradas exceções, recomendáveis apenas para os raros casos em que as necessidades educacionais não puderem ser satisfeitas, em turma do ensino comum. A Declaração afirma, ainda, que esta nova perspectiva pedagógica é capaz de reduzir as altas taxas de evasão e repetência escolar, encontradas nas estatísticas de muitos países. O paradigma da educação inclusiva mostra-se como uma forte tendência, deixando para trás uma integração linear baseada em processos adaptativos unidirecionais. A recomendação expressa a importância de que as escolas recebam incondicionalmente a todas as crianças que devem ser bem-vindas à escola de seu bairro, à escola em que seriam matriculadas, se não tivessem nenhuma deficiência.

 

 

2.4 Integração e/ou Inclusão

 

 

A presença de portadores de deficiência nas escolas de ensino comum tem sido insistentemente defendida por seus pais e educadores em movimentos em prol de sua integração nas escolas e na ordem social. O princípio da integração intensificou-se a partir de 1981, estabelecido em Assembléia Geral das Nações Unidas, como o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência.

 

O movimento pela integração sempre se referiu aos processos relacionais, com reciprocidade nas interações entre "deficientes" e "não deficientes". Esperava-se que a sociedade estimulasse as interações e os sentimentos de solidariedade entre seus integrantes, facilitando aos "deficientes" o viver participativamente com os outros.

 

Para promover a integração implementaram-se modalidades de atendimento educacionais, que variavam desde as escolas especiais até os serviços oferecidos nas escolas e que, pela extrema variedade de ofertas, foram chamados de "cascata de serviços escolares"(Carvalho, 2000). Esse processo de integração buscava favorecer o "ambiente menos restritivo possível", dando oportunidade ao aluno de "transitar no sistema", da classe regular ao ensino especial. A integração passa a ser defendida de diversas formas, desde a proximidade física até a integração instrucional, nas classes comuns. O que se buscava era chegar a um nível satisfatório em que o aluno atingiria a corrente principal chamada de "mainstreaming". Sob este modelo político-administrativo de organização do atendimento educacional escolar o aluno seria "integrado" à medida que pudesse beneficiar-se de um continuum de serviços oferecidos dentro do sistema educacional. A passagem de um ambiente mais restritivo para um menos restritivo, como a escola especial, até o ensino comum dependia, em grande medida, dos esforços pessoais de cada aluno, responsável solitário por seus êxitos e fracassos. Além disto, essa perspectiva trazia a necessidade de diagnosticar os casos, a fim de determinar que serviços seriam os mais "integradores" para cada caso, de acordo com suas possibilidades.

 

A respeito das distinções entre integração e inclusão pode-se tomar as afirmações de José Geraldo S. Bueno ao afirmar que estas duas perspectivas, apesar de partirem da incorporação desses alunos pelo ensino comum, apresentam uma diferenciação básica em relação à escola na sociedade atual:

 

A primeira, ao afirmar que a dificuldade da incorporação reside nas características dos excepcionais, deixa implícita uma visão acrítica da escola, isto é, considera que, de alguma forma, ela vem dando conta de seus fins, pelo menos em relação aos alunos considerados normais.(...)

A segunda ao considerar que existem múltiplas diferenças- originárias de condições pessoais, sociais, culturais e políticas, tem como pressuposto que a escola atual não consegue dar conta dessas diferenças, na medida em que proclama a necessidade de modificações estruturais da escola que aí está para que "elas sejam capazes de prover uma educação de alta qualidade a todas as crianças (BUENO, 1999 a, p.9)

 

Para Leny Mrech esta questão está claramente explicitada ao afirmar:

 

O paradigma da inclusão trazia, em seu bojo, a substituição de uma prática pedagógica mais encaminhada a uma concepção clínica dos processos do aluno por outra mais voltada para o contexto educacional propriamente dito.

No paradigma da integração o trabalho se direcionava para as necessidades educativas gerais dos alunos. No paradigma da inclusão o eixo se voltava para as necessidades educacionais ou educativas específicas de cada criança. (MRECH, 1999, p.132)

 

Para a referida autora, a educação inclusiva acabou estruturando uma nova forma de olhar a educação, buscando implementar novas e melhores relações entre todos os participantes da escola. Este movimento pressupõe a construção de uma rede de relações sociais de inclusão de todas as crianças na escola, que defende a mudança de ótica educativa da doença para a saúde, da deficiência e do distúrbio para as necessidades educativas especiais como a forma de criar múltiplas possibilidades de estabelecer a relação do sujeito com a escola. Na educação inclusiva, é a escola que precisa se modificar para incluí-lo e não o aluno que tem de se integrar à escola.

 

Por sua vez, Mantoan apresenta distinção semelhante quanto à integração e à inclusão:

 

A crítica mais forte ao sistema de cascata e às políticas de integração do tipo mainstreaming afirma que a escola oculta o seu fracasso, isolando os alunos e só integrando os que não constituem em desafio à sua competência.(...)

A outra opção de inserção é a inclusão, que questiona não somente as políticas e a organização da educação especial e regular, mas o conceito de mainstreaming. A noção de inclusão institui a inserção de uma forma mais radical, completa e sistemática. O vocábulo integração é abandonado, uma vez que o objetivo é incluir um aluno ou grupo de alunos que já foram anteriormente excluídos;(...) (MANTOAN, 1998b, p.31)

 

Na abordagem destes três autores citados, é possível perceber que os mesmos compartilham de referenciais teóricos aproximados, ao apontarem a educação inclusiva como o novo paradigma em educação especial, distinguindo-a da integração, apontada como um período anterior.

 

Diante das diversas abordagens existentes a respeito do fenômeno em questão é preciso definir a concepção aqui defendida. Ao analisar o processo histórico empreendido pela educação especial, entendo inegável o reconhecimento da educação inclusiva como o novo paradigma em educação especial. A educação inclusiva tem se firmado nos meios educacionais como uma tendência capaz de acolher distintas possibilidades que viabilizem melhores condições para todos os sujeitos que apresentem necessidades diferenciadas para cumprir a sua trajetória de aprendizagem. Portanto, pensar a integração não significa, necessariamente, a reflexão sobre um paradigma ultrapassado. É possível redimensionar a integração em um projeto de trabalho pedagógico e social articulado a outros setores da sociedade, no intuito de resgatar a todos os alunos, inclusive àqueles em situação de desvantagem, para um convívio repleto de oportunidades e novas aprendizagens enriquecedoras para todos os envolvidos no ambiente escolar.

 

 

2.5 O novo paradigma: implicações teórico-metodológicas da educação inclusiva

 

 

Cumpre ressaltar que a educação inclusiva, enquanto concepção paradigmática é acompanhada pelo processo de discussão de uma nova sociedade e pelo referendo de importantes cartas de princípios internacionais, tais como a Conferência Mundial de Educação para Todos e a Declaração de Salamanca, já citadas. Tais documentos têm sido referência para as mudanças conceituais e as políticas públicas ligadas à educação especial.

 

Apesar de todos os esforços convergirem para a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais no ensino comum, este fato por si só não garante benefícios de aprendizagem. A escola inclusiva pode beneficiar a todos, portadores de deficiências ou não, colaborando para que se estabeleçam relações de reciprocidade, baseadas no respeito à diferença, na cooperação e na solidariedade. E, ainda, espera-se que o trabalho coletivo seja, também, propulsor de novas e significativas aprendizagens para todos os envolvidos. A própria identificação das diferenças entre os elementos do grupo pode transformar-se em objeto de estudo. A inclusão pode ser uma oportunidade para todos os alunos, no sentido de vivenciarem acordos participativos mutuamente desenvolvidos, com ganhos nas habilidades acadêmicas e sociais e de convivência em comunidade. Um dos aspectos significativos levantados por Stainback e Stainback apresenta-se assim explicitado:

 

... o ensino inclusivo proporciona às pessoas com deficiência a oportunidade de adquirir habilidades para o trabalho e para a vida em comunidade. Os alunos com deficiência aprendem como atuar e interagir com seus pares no mundo "real". Igualmente importante, seus pares e também os professores aprendem como agir e interagir com eles. (STAINBACK; STAINBACK, 1999, p.25)

 

Portanto, a questão orientadora no processo de inclusão passa pelo oferecimento a esses alunos dos serviços que necessitam, em ambientes integrados e na formação continuada dos professores. Uma das razões mais importantes para a difusão do ensino inclusivo é o chamado "valor social da igualdade". O ensino se dá através do exemplo de que, apesar das diferenças, todos nós temos direitos iguais. Em contraste com as experiências passadas de segregação, a inclusão reforça a prática da idéia de que as diferenças são aceitas e respeitadas. A prática deve ser a de incentivar a formação de escolas que promovam a aceitação social ampla, e a cooperação entre os seus componentes, ampliando a relação educativa para além da comunidade escolar. O reconhecimento de que existem formas variadas de estar no mundo intensifica-se quando essas são valorizadas no ambiente escolar.

 

No que se refere a essa concepção cumpre ressaltar as aproximações que aponta Baptista:

 

É preciso explorar a alternância de lugares. É fácil imaginar que um aluno com deficiência será auxiliado pelo colega considerado normal, nosso desafio deve ser o oposto: devemos ser capazes de projetar situações que permitam, inclusive, que o aluno com deficiência auxilie e ensine o seu colega. (BAPTISTA, 2000, p.3)

 

A educação inclusiva propõe que a convivência com a diferença prepare o sujeito para a vida. E assim, amplia o conjunto dos sujeitos que estão no ensino comum com aqueles advindos da educação especial e até com muitos que nunca freqüentaram a escola anteriormente e que, por isso, nem receberam a alcunha de "aluno especial". Assim, a educação inclusiva é capaz de criar novos entrelaçamentos na constituição dos sujeitos e nos seus relacionamentos interpessoais, permitindo a formação de novas competências pedagógicas que passam a exigir do professor a capacidade de trabalhar com classes heterogêneas e, assim, aceitar o desafio diário de deparar-se com o novo e o inusitado.

 

 

2.6 De portadores de deficiência a alunos em situação de desvantagem

 

 

Tendo em vista a necessidade de apresentar as características mais claramente definidoras dos alunos diretamente envolvidos no presente estudo que servirão como objeto de estudo, faz-se necessário explicitar a opção terminológica a ser utilizada, com relação aos sujeitos da pesquisa.

 

Na última década, a concepção da educação inclusiva tem mostrado a preponderância do conceito necessidades educativas especiais ou educacionais e a preocupação em qualificar as implicações do contexto sobre a aprendizagem dos alunos. Dessa forma, os sujeitos da educação especial apresentam um novo perfil, delineado a partir do confronto entre as suas características e as exigências contextuais. Amplia-se, assim, o grupo de sujeitos-alvo. Sobre essa ampliação, observam-se as contribuições contidas na Declaração de Salamanca:

 

3. O princípio que orienta esta Estrutura [Estrutura de Ação em Educação Especial] é o de que escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüisticas ou outras. Aquelas deveriam incluir crianças deficientes e superdotadas, crianças de rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos desavantajados ou marginalizados. (BRASIL, 1994, p.3)

 

A recomendação contida na Declaração tem servido para redimensionar os sujeitos-alvo da educação especial, oportunizando a possibilidade de que todas as crianças, jovens e adultos possam ocupar o seu espaço no ensino comum. Entretanto, a educação especial, ainda, continuará a preencher um espaço importante na escolarização de determinadas crianças e jovens que exigem um atendimento específico às suas necessidades de desenvolvimento biológico e social.

 

O conceito "necessidades educacionais especiais" começou a ser utilizado por volta de 1960. A partir dessa nova terminologia, um aluno nessa situação seria aquele que apresentasse algum problema de aprendizagem ao longo de sua escolarização, que exigisse uma atenção mais específica e maiores recursos educacionais do que os necessários para os colegas de sua idade. Ao evitar a terminologia da deficiência e referir-se a problemas de aprendizagem, a ênfase situa-se na escola e na resposta educacional. A este respeito pode-se destacar o que aponta Marchesi e Martín:

 

O conceito de necessidades educacionais especiais remete, em primeiro lugar, às dificuldades de aprendizagem, mas também aos maiores recursos educacionais necessários para atender essas necessidades e evitar estas dificuldades. (...)

O termo recursos educacionais tem como referente imediato o maior número de professores ou especialistas, a ampliação do material didático ou, mais especificamente, a supressão de barreiras arquitetônicas e a adequação dos edifícios. (MARCHESI; MARTÍN, 1995, p.12)

 

Com a difusão dessa nova terminologia, o conceito atingiu notoriedade e surge uma nova tendência que utiliza a expressão "alunos com necessidades educativas especiais", buscando aproximar cada vez mais a inclusão desses alunos com as questões relacionadas à educação. A difusão desse conceito propõe-se a ampliar a análise de questões relacionadas com a aprendizagem dos sujeitos compreendidos em um "padrão de normalidade", proposto anteriormente. Essa nova conceituação proposta, também, em Salamanca, destaca o perfil do aluno que historicamente tem caracterizado o alunado da educação especial: "...pessoas com deficiência seja ela mental, auditiva, visual, motora, física, múltipla ou decorrente de distúrbios invasivos do desenvolvimento, alunos com altas habilidades..." (Carvalho, 2000). E além desses, despontam aqueles "casos sociais": alunos que têm as suas dificuldades (de aprendizagem e/ou interação) associadas predominantemente, à precariedade de seu contexto social: restrições econômicas, risco de marginalidade social , violência, etc." (Baptista, 2000).

 

Com relação aos sujeitos que constituem, atualmente, o alunado das escolas, em especial na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, e os referencias teóricos destacados, proponho como o termo mais adequado " alunos em situação de desvantagem". Essa denominação permite designar os sujeitos submetidos a toda gama de características adversas assinaladas e que, devido a esses fatores encontram-se impedidos, mesmo temporariamente, de avançar em suas aprendizagens. A presença dos alunos "diferentes" pode assumir a dimensão de um trabalho recíproco, capaz de enriquecer a relação educativa em que todos podem aprender mais e melhor.

 

Ao reconhecer a importância da experiência curricular, proposta nas escolas por ciclos de formação da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, a respeito dos pressupostos defendidos em propostas de inclusão, surgiu a possibilidade de desenvolver a pesquisa neste contexto, permitindo o aprofundamento de questões relacionadas aos sujeitos envolvidos neste processo e as trajetórias de aprendizagem percorridas. Diante disso, justifica-se o estudo dos referencias ora apresentados, no sentido de permitirem melhores condições de compreensão do fenômeno a ser estudado.

 

 

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3 O Projeto Escola Cidadã no Município de Porto Alegre

 

 

Posso saber pedagogia, biologia como astronomia, posso cuidar da terra como posso navegar. Sou gente. Sei que ignoro e sei que sei. Por isso, tanto posso saber o que ainda não sei como posso saber melhor o que já sei. E saberei tão melhor o que já sei. E saberei tão melhor e mais autenticamente quanto mais eficazmente construa minha autonomia em respeito à dos outros. (Paulo Freire, 1997)

 

 

3.1 O 1º Congresso Constituinte Escolar

 

A partir do início da gestão da Administração Popular no Município de Porto Alegre (desde 1989 até a presente data), surgiu, de forma bastante determinada, a preocupação em elaborar um projeto, chamado de Escola Cidadã, projeto que se insere em outro mais amplo denominado de "Projeto Cidade Cidadã".

 

A política da Administração Popular definiu, como principal meta, a democratização radical da cidade. Dessa forma, pretendia-se garantir a realização de ações articuladas entre as diversas Secretarias do Município voltadas para objetivos comuns fundamentados na democratização. Na área da educação, havia a busca da garantia de acesso à escola e ao conhecimento, num processo de participação social e reflexão crítica sobre a realidade.

 

A Escola Cidadã tem como meta, através de processos participativos, operar profundas modificações na estrutura da escola para superar os mecanismos de exclusão das classes populares e formar sujeitos capazes de conquistar cotidianamente sua cidadania. Encontra-se expresso em sua política educacional que um de seus objetivos mais amplos é a chamada "reinvenção da escola", isto é, buscar consolidar um processo de reestruturação curricular capaz de superar as contradições tradicionais da escola, de currículo, de conhecimento, de ensino, de aprendizagem e de avaliação escolar. O compromisso com as classes populares mostra-se claramente explicitado como o caminho mais coerente em sua proposta política. A legitimação do saber popular mostra-se como uma tendência que permeia todas as ações.

 

A democratização da gestão da escola e do acesso ao conhecimento são premissas básicas deste processo de transformação almejado. Além de buscar a formação do sujeito como agente social-histórico, há a defesa de que o conhecimento seja trabalhado de forma contextualizada para garantir maiores níveis de participação e a existência de articulações entre o aprendizado e a vida dos sujeitos envolvidos.

 

Dessa maneira, consolida-se a intenção, por parte da Secretaria Municipal de Educação, em constituir um projeto político-pedagógico capaz de envolver toda a comunidade, em um processo de apropriação do saber, no qual a escola deixaria de ser apenas um pólo transmissor de saber constituído para integrar uma rede de iniciativas que visam ao desenvolvimento da cidadania e à garantia de melhores condições de vida. Portanto, a escola passa a atuar no conjunto da sociedade, ao interagir com os diversos segmentos da comunidade escolar, buscando a melhoria de condições de vida para todos.

 

Assim, há dois conceitos-chave que despontam fortemente: participação popular e desenvolvimento da consciência crítica.

 

A Secretaria explicitava seu propósito de ver efetivado, nas escolas da Rede Municipal de Ensino, o exercício da prática de relações dialógicas e de construção coletiva, onde se fizessem presentes e fossem considerados os interesses de suas comunidades. Algumas ações representativas se mostram nesta direção: a implementação dos Conselhos Escolares, acompanhada de assessoria; a eleição de diretores pela comunidade escolar; o Serviço de Educação de Jovens e Adultos(SEJA); a construção de uma política educacional para meninos e meninas de rua; a implementação de proposta político-pedagógica para os alunos com necessidades educativas especiais; o projeto de criação das Escolas Infantis e uma política de formação sistemática e permanente para os trabalhadores em educação, voltada para os interesses das classes populares.

 

Neste contexto, surgiu o Projeto Constituinte Escolar para traduzir e consolidar esta política na medida em que todos os espaços educativos da Rede Municipal de Ensino se encontravam mobilizados para a reelaboração ou criação de seus regimentos escolares. O início desse processo aconteceu em março de 1994, impulsionado pela busca de superação da defasagem da escola "tradicional" em relação às grandes transformações deste final de século. Tais mudanças podem ser consideradas tanto no que se refere aos avanços da ciência e, consequentemente, às novas formas de organização do trabalho, como aos desafios histórico-políticos da construção de uma nova ordem mundial.

 

No decorrer do ano de 1994, a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre elaborou, em parceria com os segmentos que compunham a comunidade escolar, um plano de trabalho onde foram explicitados três eixos para a discussão com as escolas da Rede Municipal de Ensino: a escola que temos, a escola que queremos e como chegar à escola que queremos. O desdobramento desse terceiro eixo permitiu a indicação das fases seguintes do projeto, que foram implantadas, no ano seguinte, quando da realização da Constituinte Escolar.

Esse processo estava balizado, principalmente, por determinadas questões que despontaram, desde o início da Administração Popular como fundamentais:

 

- Como romper com a prática existente e construir coletivamente um novo currículo?

- Como superar as dificuldades pedagógicas arraigadas em nosso fazer educativo, fruto de uma formação livresca comprometida com uma visão sectária de sociedade?

 

Nessa oportunidade, todas as escolas estiveram representadas pelos sete Núcleos de Ação Institucional do qual cada uma fazia parte. A discussão buscava concentrar questões, como as apontadas acima, em grupos temáticos, os quais foram agrupados com a denominação de: Gestão da Escola, Currículo e Conhecimento, Avaliação e Princípios de Convivência. A Constituinte Escolar discutida a partir desses quatro eixos temáticos foi sistematizada nesses encontros regionais ocorridos.

 

Posteriormente, quando da realização do 1º Congresso Municipal Escola Constituinte em maio de 1995 foram 94 (noventa e quatro) princípios aprovados referendados em um documento-base (Silva, Luiz H. 1995a) que veio a se constituir nas diretrizes globais para a construção dos regimentos escolares. Era entendido, por parte da Secretaria, que a legitimação de práticas e relações que possibilitassem avanços democráticos, tanto no interior da instituição escolar, nas suas dimensões política, administrativa e pedagógica, quanto na sua relação com a comunidade, concretizar-se-ia no regimento escolar, instrumento legal de expressão de suas conquistas.

 

A partir de 1996, em todas as escolas da Rede Municipal de Ensino iniciou-se a elaboração de seus regimentos, baseadas nas teses do Congresso Constituinte Escolar, mas, ao mesmo tempo, resguardando as especificidades de cada uma. Essas práticas transformam a organização dos tempos e espaços escolares, oportunizando condições para construções interdisciplinares do conhecimento, cujo ponto de partida e de chegada é a realidade social, sem ficar restrito ao senso comum, mas avançando no sentido de construir um novo saber, resultado de sínteses entre o conhecimento popular e o conhecimento científico.

 

Portanto, essas iniciativas desencadeadas até aqui permitiram traçar o perfil do currículo participativo que se mostrou claramente definido nesse Congresso. O currículo seria concebido e construído de forma interdisciplinar, isto é, a partir de análises e sínteses sucessivas. O coletivo de professores da escola buscaria a contribuição das diferentes disciplinas para desvelar os objetos de estudo. Tanto os objetos quanto o próprio processo de análise seriam considerados totalizações históricas contemporâneas, estando submetidos a diferentes leituras, de acordo com os interesses e intenções dos sujeitos envolvidos. O pressuposto inicial é de que a escola é um espaço de legitimação da cidadania, pois se constitui como um "lugar" onde é possível refletir e deliberar sobre o que estudar, como estudar e sobre a maneira de nos relacionarmos sem ferir a liberdade do outro, nem desrespeitá-lo, sendo parceiros e construtores da escola que queremos.

 

Com o objetivo de dar continuidade ao processo de discussão e reestruturação curricular, com base no que se deliberou neste Congresso, a Secretaria Municipal de Educação elaborou uma proposta político-pedagógica, o documento referência para a Escola Cidadã, apontando possibilidades para a superação da exclusão e, portanto, voltada para a realidade social e o sucesso do aluno. Dentre várias opções apontadas, a proposta de organização curricular dos Ciclos de Formação firmou-se como uma alternativa capaz de dar sustentação e operacionalizar tudo o que já fora deliberado até então. Essa nova organização pedagógica teve o início de sua vigência na Escola Monte Cristo, no ano de 1995.

 

 

3.2 O 2º Congresso Municipal de Educação

 

 

O 2º Congresso Municipal de Educação ocorreu em dezembro de 1999, com a participação de delegados da comunidade escolar, incluindo as creches comunitárias e o MOVA e do Fórum das Entidades, com 22 (vinte e duas) instituições ligadas à educação. O objetivo do 2º Congresso era o de construir diretrizes na área da educação em Porto Alegre para serem levadas ao 3º Congresso da Cidade, realizado em maio de 2000.

 

As ações foram balizadas por três eixos temáticos que serviram para a elaboração do texto-base, os quais são: democratização do acesso, democratização do conhecimento e democratização da gestão. A comissão de sistematização organizou o material obtido a partir dos encontros regionais preparatórios em 49 (quarenta e nove) reivindicações e a tese-guia com 59 (cinqüenta e nove) itens.

 

As diretrizes aprovadas sobre a "Democratização do Acesso" apresentaram como grande preocupação a articulação da Rede Municipal de Ensino com outros sistemas de ensino, com vistas à ampliação das vagas dos alunos egressos das escola municipais. Além disso era bastante citada a necessidade de priorizar mais recursos humanos e financeiros para a educação infantil e a garantia de condições favoráveis para a aprendizagem dos alunos com necessidades educativas especiais.

 

Quanto ao eixo temático "Democratização do Conhecimento", as diretrizes aprovadas versaram sobre a importância da efetivação de condições capazes de efetivar a proposta político-pedagógica, tais como: momentos de retomada com a comunidade escolar, a formação continuada dos professores em serviço e a avaliação escolar, dentre outros.

 

No que refere-se ao eixo temático "Democratização da Gestão" cumpre ressaltar as diretrizes que apontam para a qualificação do processo de participação e de representação nos organismos criados para tanto no âmbito escolar (os Conselhos Escolares, Grêmios Estudantis, Associações Comunitárias) e municipal (NAIs, Orçamento Participativo da Cidade e da Secretaria Municipal de Educação).

 

As diretrizes que foram discutidas e aprovadas serviram como orientação para a elaboração das políticas educacionais dos quatro anos subseqüentes de governo municipal. Dentre as proposições, ficou evidente que a concepção inicial do movimento "Escola Cidadã" buscando articular o social e o pedagógico no diálogo com a comunidade escolar manteve-se preponderante.

 

 

3.3 Os Ciclos de Formação

 

A opção metodológica de Ciclos de Formação na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre tem o seu início, a partir do ano de 1995, com a realização do Congresso Constituinte Escolar. Nas discussões realizadas pelos diversos segmentos representados, despontava a importância de garantir condições de viabilização de novas opções curriculares que permitissem a realização dos princípios ali defendidos. É importante destacar que a opção metodológica dos ciclos de formação não foi apontada como o único caminho para a viabilização das diretrizes da Escola Cidadã, como consta na "cartilha" publicada que apresenta os princípios aprovados ( Amaro; Siebiger, 1996):

 

47. A escola deve ter autonomia para optar pelo estudo e implantação dos ciclos, seriação, etapas ou outras formas de organização, assegurada a qualificação do corpo docente e a reestruturação da proposta pedagógica e curricular da escola.

64. Garantir a permanência do aluno na etapa de aprendizagem em que se encontra contemplando as diferentes modalidades de ensino (série, nível, ciclo, totalidade ...) sem excluí-lo do processo educativo.

 

Portanto, mostra-se evidente, neste momento, uma multiplicidade de opções possíveis na busca de opções curriculares condizentes com as diretrizes propostas na Escola Cidadã. A opção metodológica dos Ciclos de Formação começa a figurar claramente no ano de 1995, durante o período inicial de estudos, realizados a partir do mês de março pelos professores e demais segmentos da comunidade escolar coordenados pela assessoria da Secretaria Municipal de Educação, na estreante Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo. Naquela época, os momentos destinados para estudo e reflexão estavam voltados para a análise de importantes documentos de outras Redes de Ensino que dedicavam suas práticas pedagógicas a difundir os ciclos de formação em uma prática voltada às classes populares. Dentre estes documentos destacam-se as contribuições da Escola Plural de Belo Horizonte, assim como os referenciais teóricos do Governo da Prefeita Luiza Erundina em São Paulo.

 

A chamada "Escola Cidadã" que, ao se afirmar participativa e cooperativa, passou a exigir formas e conteúdos de trabalho que buscassem a inclusão da criança, jovem e adulto em uma educação que lhe facultasse o direito a cursar o ensino fundamental com aprendizagens importantes não apenas para o seu futuro, mas também para o seu presente. Dentre estas, destacam-se a leitura e a escrita da língua materna, o conhecimento das quatro operações matemáticas – adição, subtração, multiplicação e divisão, a capacidade de organizar-se em ações coletivas na escola e na comunidade e o posicionamento crítico frente ao mundo. Para alcançar essas metas junto às classes populares, residentes quase em sua totalidade na periferia do município de Porto Alegre, a escola precisava redimensionar o seu papel e assumir sua condição, enquanto espaço institucional com as melhores condições para a realização de tais aprendizagens, junto a essas comunidades. A escola precisava transformar-se em uma escola de práticas coletivas, com planejamento das aulas em conjunto, estudos sobre o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos de forma contínua nas ações cotidianas e nos momentos de formação em serviço dos professores, realização de pesquisas na comunidade sobre situações problema que permitissem desencadear o ensino com significado para alunas e alunos, bem como práticas avaliativas que levassem em consideração as aprendizagens singulares dos sujeitos envolvidos.

 

Diante dessas proposições, a opção pelos ciclos de formação configurou-se como possibilidade de romper com a lógica excludente da escola tradicional, ao permitir a sua organização em uma nova lógica de organização do tempo e do espaço, buscando garantir aprendizagens qualificadas para todos. O que se desenvolve é um processo de reconceituação da escola como espaço de desenvolvimento e de aprendizagem. A constituição do sujeito é a preocupação central em torno do qual se estrutura o processo em que as aprendizagens são definidas em função deste objetivo mais amplo. Não se trata, portanto, de justaposição de aprendizagens das várias áreas, mas concebe-se o conhecimento como parte integrante da formação humana, o que inclui a dimensão ética do conhecimento. A proposta envolveu, de maneira fundamental a gestão, o gerenciamento do tempo, da utilização do espaço, dos instrumentos culturais, da coletividade constituinte do espaço escolar. Junto a isto, somaram-se as discussões quanto às mudanças necessárias no currículo, planejamento das atividades e no sistema de avaliação como prerrogativas fundamentais no caminho da pretendida transformação das práticas pedagógicas .

Dessa forma, a escola envolve-se no gerenciamento do tempo, na utilização do espaço, dos instrumentos culturais, da coletividade que se reúne em torno do espaço escolar e, finalmente, da socialização do conhecimento. O processo de aprender é redimensionado para um trabalho com conteúdos do assim chamado "conhecimento formal", simultaneamente, ao desenvolvimento de sistemas expressivos e simbólicos no processo de significação de novos instrumentos culturais.

 

 

3.4 A Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo

 

 

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo iniciou suas atividades no ano de 1995, surgindo como a primeira escola da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre a trabalhar com Ciclos de Formação.

 

O grupo de educadores envolveu-se, durante aproximadamente um mês, antes do início das aulas, com a realização de sessões de estudo seguidas de fóruns deliberativos com objetivo de consolidar discussões. As discussões já tinham sido iniciadas no ano anterior, 1994, em alguns encontros com a assessoria da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, com parte destes educadores que fizeram a opção por desempenharem suas atividades profissionais na Escola Monte Cristo. Nesse período, surgiram reflexões que foram sistematizadas e que serviram de ponto de partida para a Secretaria elaborar, posteriormente, o documento-referência da Escola Cidadã para a Rede Municipal de Ensino. A Escola Monte Cristo constituiu-se no pólo difusor dos pressupostos teórico-metodológicos, no qual se efetivaram as primeiras tentativas de consolidação de uma nova proposta para toda a Rede Municipal de Ensino do Município. A esse respeito é pertinente apresentar a reflexão do ex-secretário de educação José Clóvis de Azevedo:

 

A experiência referência para a implantação do ensino por ciclos de formação iniciou-se em 1995, na Escola Monte Cristo. A construção da proposta baseou-se na contribuição teórica das pesquisas e da teoria de autores como Piaget, Vygotsky, Wallon, Pistrak, Paulo Freire e outros. O coletivo de professores, funcionários e pais da Escola Monte Cristo tiveram uma intensa participação na autoria da proposta. (AZEVEDO, 2000 b, p.52)

 

As ações pedagógicas desenvolvidas nesse período tinham como parâmetro a realidade local contextualizada no eixo temático para o processo pedagógico. A dialogicidade entre os saberes nas dimensões sócio-psicopedagógica e epistemológica, propulsionava a construção do conhecimento e a concepção sócio-histórica na produção do conhecimento científico. Certas ações marcaram, decisivamente, a evolução da proposta dos Ciclos de Formação. Inicialmente, buscou-se recolher a maior quantidade possível de referências bibliográficas e materiais teóricos, disponíveis entre os educadores que demonstraram interesse em iniciar este processo. O interesse maior era recolher bibliografia de autores que apresentassem alternativas à escola tradicional, onde o fenômeno fracasso escolar fosse analisado sob diferentes pontos de vista.

 

Conforme Rocha (1999) esse conjunto de materiais selecionados pelos educadores, em parceria com as contribuições dos assessores da Secretaria, suscitava uma discussão sobre o tipo de escola e de currículo nos Ciclos de Formação. Por conseguinte, a escola passava a ser valorizada a partir das discussões que consideravam as perguntas: a quem serve este conjunto de conteúdos programáticos? Como estes são selecionados? Que disciplinas seriam desenvolvidas em um currículo interdisciplinar? Além disso, havia a preocupação em conhecer autores que abordassem propostas de Ciclos de Formação, que refletissem sobre a questão da interdisciplinaridade e do currículo, pontos fundamentais nas propostas de ciclos, implementadas em várias partes do mundo. Nesse processo, destacava-se ainda, o respeito ao ritmo de trabalho próprio, ao tempo para aprender e as experiências de vida de cada educando, facilitando a organização coletiva e interdisciplinar da escola.

 

Em cada ciclo existia um conjunto de princípios e conhecimentos que norteavam o trabalho pedagógico do primeiro ano do primeiro ciclo até o último ano do terceiro ciclo, dando-lhe complexidade e aprofundamento. A organização dos ciclos obedecia à seguinte organização:

 

1º Ciclo – alunos de 6 a 8 anos de idade;

2º Ciclo – alunos de 9 a 11 anos de idade;

3º Ciclo – alunos de 12 a 14 anos de idade.

Portanto, os alunos encontravam-se, preferencialmente, agrupados pela faixa etária, tendo como critério o respeito às etapas de desenvolvimento biopsicossocial do educando, perfazendo nove anos de escolaridade para o Ensino Fundamental. Pretendia-se que cada ciclo pudesse acompanhar as características dos educandos em suas diferentes idades e situação sociocultural rompendo com o ensino estandardizado. À medida que aumentava o grau de entrosamento entre os alunos, as suas vivências eram enriquecidas com diferentes informações e conhecimentos. As aprendizagens demonstravam o seu caráter de produção coletiva, ao mesmo tempo que explicitavam o grau de elaboração e compreensão a respeito dos assuntos estudados dando a necessária continuidade aos estudos.

 

Com relação à organização das aprendizagens dos alunos em ciclos de formação houve muitas sessões de estudo que serviram para definir o conceito de alfabetização a ser desenvolvido na escola por ciclos de formação, com base nos estudos de pesquisadores tais como: Paulo Freire, Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e Esther Grossi. A alfabetização passava a ser entendida na dimensão de um processo intrínseco ao sujeito, que dependia do desenvolvimento de estruturas mentais associadas às interações no meio social do aluno. A definição quanto à extensão do fenômeno alfabetização e o impacto que a mesma poderia assumir nas questões cotidianas levou o grupo de educadores a optar pela sua defesa, quando da aprovação do Regimento Escolar. A premissa defendida era a ampliação do início do período de escolaridade, no ensino fundamental, para os seis anos de idade. A meta era oportunizar a convivência dos alunos no ambiente escolar nesta faixa etária, em que muitos estariam sem freqüentar a escola.

 

A adoção dos ciclos de formação pretendia evitar as freqüentes rupturas, ou a excessiva fragmentação do percurso escolar, ao suspender a reprovação e assegurar a continuidade do processo educativo. Dessa forma, permitia-se aos professores que adaptassem a ação pedagógica aos diferentes ritmos dos alunos, sem, no entanto, perder a noção das exigências de aprendizagem caraterísticas dos diferentes momentos da evolução do sujeito. Segundo Rocha (1996b), atuando nessa dimensão, o processo de avaliação pretendia atender as funções de:

 

... um processo contínuo, participativo, com funções diagnóstica, prognóstica e investigativa cujas informações propiciam o redimensionamento da ação pedagógica e educativa, reorganizando as próximas ações do educando, da turma, do educador, do coletivo do ciclo e mesmo da escola, no sentido de avançar no entendimento e desenvolvimento do processo de aprendizagem. (ROCHA, op. cit., p.268)

 

Os momentos avaliativos eram elaborados com caráter formativo, de conhecimento e consideração às diversidades culturais e sociais, evidenciadas nas diferenças de cada educando e encaradas como uma questão de ritmos, de tempos e maneiras singulares para aprender. Na Escola Monte Cristo, a equipe pedagógica ocupou-se de sistematizar certas etapas que delinearam o processo de avaliação desencadeado, a partir das discussões travadas no grupo de professores:

 

"Dossiê – documento organizado pelo coletivo de professores que atuam na turma de alunos com produções significativas de cada um;

Auto-avaliação dos alunos - instrumento organizado pelos professores para o aluno analisar e expressar suas aprendizagens, ações em sala de aula e na escola, em relação aos colegas, funcionários e demais elementos da comunidade escolar;

Avaliação da dinâmica do cotidiano da sala de aula: espaço para a manifestação livre na relação professor e alunos, a respeito do trabalho desenvolvido em sala de aula e que poderia acontecer sistematicamente;

Avaliação da Turma como um Todo: momento de avaliação conjunta, com a participação de todos os alunos, professores, pais representantes, funcionários e membros da equipe diretiva sobre o trabalho pedagógico ocorrido ao longo do trimestre, procurando destacar as características da turma e os encaminhamentos para o próximo período;

Ver pelo Olhar da Família: instrumento de pesquisa a ser preenchido pela família do aluno, a respeito das aprendizagens de seu filho em relação ao contexto escolar;

Relatório de Avaliação: relatório descritivo elaborado pelo coletivo de professores, organizado de forma a garantir a expressão das quatro áreas do esquema curricular, apresentando o aluno na sua socialização e organização do trabalho escolar." (PISTÓIA; RYBU, 1996, p.2)

 

A avaliação, organizada desta forma, assumia a dimensão de um trabalho participativo em que o poder era descentralizado em relação ao professor e passava para os outros segmentos da comunidade escolar, implicando em investigações sistemáticas acerca de como as crianças e os adolescentes concebiam, sentiam, viam e percebiam o objeto do conhecimento. O currículo e a cultura escolar eram explorados em ações construídas no diálogo " – um diálogo enquanto acolhimento, análise, questionamento, investigação, problematização, intervenção "amorosa" de todos os agentes envolvidos em movimentos diferenciados." (Lock; 1999, p.80). As três diferentes formas de progressão (Progressão Simples, com Plano Didático-Pedagógico de Apoio e com Avaliação Especializada) que eram manifestadas no relatório de avaliação, refletiam a concepção que permeava toda a proposta dos ciclos de formação:

 

...a busca da constante reorganização curricular, da participação de todos, do respeito ao lugar em que a escola se encontra, do contexto de desenvolvimento dos educandos em cada faixa etária, das necessidades de avanço diante dos limites observados e da constante postura de ação-reflexão-ação sobre o cotidiano escolar. (KRUG; ROCHA, 1999, p.6)

 

No sentido de assegurar a aprendizagem de todos os alunos foi preciso repensar o cotidiano. Foram criados espaços com diferentes finalidades que, operando numa relação orgânica, têm fornecido o suporte necessário para aprendizagem dos alunos com algum tipo de dificuldade. Dentre esses dispositivos, destaco: o Laboratório de Aprendizagem a Sala de Integração e Recursos e o professor itinerante. A complexidade dos espaços "complementares" – Sala de Integração e Recursos e Laboratório de Aprendizagem – foi ampliada com a criação de uma alternativa às turmas de ano-ciclo no atendimento aos alunos: a turma de progressão. Considerando a importância deste espaço para o presente estudo haverá, em seguida, um maior detalhamento.

 

 

3.5 A Turma de Progressão

 

 

A proposta "Escola Cidadã" tem-se caracterizado pela pluralidade de espaços e dispositivos que visam à garantia de atendimento integrado. A estrutura curricular dos Ciclos de Formação, em Porto Alegre, propõe a relação entre faixa etária e escolaridade para a enturmação dos alunos. Entretanto, para aqueles que se encontram fora da idade prevista para o ano-ciclo, em vista de suas peculiaridades individuais, surgiu a necessidade de uma nova organização do espaço educativo, na qual existisse uma organização de tempo e espaço de aprendizagem diferenciada em relação àquela pensada inicialmente. A turma de progressão apresenta-se como uma alternativa possível para acolher alunos que se encontram temporariamente impedidos de acompanhar os seus pares de idade, por apresentarem defasagem entre idade e escolaridade, devido às inúmeras condições adversas que constituem o seu universo de vida. A turma de progressão tem sido utilizada também no atendimento a alunos provenientes de outras escolas e que precisam de adaptação ou mesmo encontram-se sem escolaridade alguma. De acordo com as palavras de Azevedo, ex-secretário de educação do município de Porto Alegre, as turmas de progressão são definidas como:

 

- Não são turmas isoladas e diferentes do coletivo da escola. Elas trabalham o conhecimento, respeitando as características do desenvolvimento do aluno, mas numa perspectiva interdisciplinar e relacionada com o complexo temático da escola.

Conhecimento, assim como nas outras turmas do anos-ciclos, não se dá pela mera repetição de conteúdos, mas pela construção e desenvolvimento de um processo sócio-cognitivo. Os conteúdos são vistos como instrumentos desse processo. (AZEVEDO, 1999, p.9)

 

Na turma de progressão, a organização de tempo-ano é diferente da organização ano-ciclo. Isto significa que os alunos que se encontram nesta condição, podem ser promovidos, durante o ano letivo, para o ano-ciclo mais próximo de sua faixa etária e nível de desenvolvimento social e cognitivo, desde que apresentem condições de continuar sua socialização e estudos. Neste espaço pedagógico, há necessidade de se oferecer um atendimento mais individualizado, limitando o número de alunos por turma, buscando focalizar nas potencialidades individuais a ênfase do trabalho curricular. O limite de tempo para permanência na turma de progressão é de, aproximadamente, dois anos. Devido ao constante fluxo de alunos, aliada a nova concepção de currículo e avaliação, o número de turmas de progressão tende a reduzir-se nas escolas cicladas, pela suposta capacidade de permanência dos alunos no ano-ciclo e a redução da defasagem idade/escolaridade. A concepção de trabalho tende a mudar constantemente de acordo com o perfil do aluno a ser atendido, evidenciando o seu caráter de espaço intermediário e de duração limitada. Muitas vezes, a permanência transitória na turma de progressão é a garantia da realização de estudos básicos na Língua Portuguesa, na área do Pensamento Lógico-Matemático ou nas Ciências Naturais e Sociais. Merece destaque, por outro lado, a vivência de atividades coletivas e participativas de construção de princípios de convivência, assim como o desenvolvimento da expressão oral, da leitura compreensiva e da consciência crítica diante de fatos e conhecimentos.

 

A turma de progressão representa uma possibilidade de mudança na lógica curricular tradicional, porque se propõe a atender o ritmo de aprendizagem dos alunos, na elaboração de conceitos que se originam no complexo temático, valorizando as suas experiências de vida e o seu desenvolvimento intelectual, afetivo e social. O currículo interdisciplinar procura romper com a lógica da seletividade e da exclusão escolar, colocando a relação entre ensino e aprendizagem articulada a um processo contínuo de construção e apropriação do conhecimento que pressupõe diferentes ritmos e caminhadas de seus componentes. O trabalho realizado é direcionado para a superação das eventuais dificuldades, respeitando as trajetórias individuais, valorizando os recursos pessoais, propondo novos desafios com a questão do conhecimento e, assim, efetivando o processo de aprendizagem.

 

 

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4 O Complexo Temático

 

Leve-me as folhas, América,

leve-as ao Sul e ao Norte:

faça que sejam em todo lugar bem-vindas

pois elas são nascidas de você,

envolva-as de Leste a Oeste

como elas gostariam de envolver você,

e vocês, precedentes,

liguem-se a elas amorosamente,

pois amorosamente elas se ligam

a vocês.

 

Aprendi velhos tempos, me sentei

estudioso aos pés de grandes mestres,

e agora quem me dera

os grandes mestres voltarem

e me estudarem."

(Walt Whitman, 1983,p.19)

 

 

O esquema curricular denominado "Complexo Temático" surgiu como uma alternativa para a consecução da proposta político-pedagógica da Escola Cidadã. Numa primeira análise, o complexo temático atendia a esta disposição por conter um componente importante: a construção coletiva e interdisciplinar de suas diretrizes em todas as fases de sua elaboração, em que o conhecimento adquiria significado, não pela sua condição de produto, mas enquanto processo propiciador de novas relações com as aprendizagens dos alunos. O conhecimento assumia importância na medida em que o aluno percebia-se capaz para aprender, tanto por ser respeitado em suas especificidades e, mais do que isso, por destacar-se através delas. Os conceitos não eram adquiridos de forma rígida; vários conceitos poderiam ser trabalhados simultaneamente. A cada nova situação, os educandos reorganizavam, aprofundavam e inter-relacionavam os conteúdos possíveis para a compreensão e a assimilação dos conceitos e, concomitantemente, do próprio complexo temático.

 

Na abordagem a ser apresentada neste capítulo, os elementos constituintes do complexo temático serão posteriormente explicitados e definidos. A partir das contribuições do pensamento de Pistrak e Paulo Freire, das concepções de currículo e interdisciplinaridade, constituiu-se o arcabouço teórico que resultou em proposições curriculares como o complexo temático, que tem sido utilizado nas escolas da Rede Municipal de Ensino em Porto Alegre.

 

 

4.1 Os referenciais conceptuais do Complexo Temático

 

4.1.1 O pensamento de Pistrak e os complexos

 

Com relação aos teóricos que serviram como balizadores para a elaboração do Complexo Temático, tal como se configurou na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, é imprescindível destacar as contribuições de Pistrak. Este educador russo foi atuante no início da revolução de 1917 e propunha a transformação da escola burguesa em uma escola revolucionária. Junto a outros educadores, Pistrak formulou a idéia da Escola Única do Trabalho que pregava dois princípios fundamentais: as relações com a realidade atual e a auto-organização dos alunos(Pistrak, 1981). Dessa maneira, questionava-se a educação tradicional, refazendo a seleção de disciplinas e de conteúdos com um método que enfatizasse as relações e dinâmicas recíprocas do fenômeno a ser estudado e que aplicasse o princípio da pesquisa ao trabalho escolar, engajando os alunos na "revolução". Havia um destaque especial com relação ao papel que a escola poderia desempenhar junto à vida dos alunos, indo além de um local para a instrução. Isto é, a escola poderia tornar-se o centro da vida dos alunos, ao permitir a vivência de oportunidades ricas com o conhecimento e a cultura, no meio social em que estariam inseridos e, assim, elevaria a escola à categoria de centro cultural para toda a comunidade.

 

A educação era vista como uma forma de ação político-social que não se limitava a interpretar o mundo, mas que procurava, pela prática educativa, desenvolver uma ação transformadora do real. A proposta educacional fundamentava-se na auto-organização dos alunos e na sua autonomia exercida ativamente através da cooperação infantil, em que o professor era colocado na condição de parceiro na conquista dos novos conhecimentos. Pistrak (1981) defendia a abolição da dicotomia entre a teoria e a prática, o agir e o refletir, o trabalho manual e o trabalho intelectual e estimulava a auto-organização dos alunos com a participação dos professores bem como o ensino por complexos, procurando dar sentido a cada problema novo e contextualizando-o como organizador de novos conhecimentos, com o objetivo de criar formas capazes de organização, num espaço coletivo. O ensino por complexos pressupunha o princípio da pesquisa e de reelaboração dos conhecimentos com a totalidade, de acordo com o que Pistrak propunha:

 

Cada complexo proposto aos alunos não deve ser algo de fortuito, nem um fenômeno ou um objeto insignificante (seja qual for, num dado momento, a importância propriamente escolar deste objeto), mas, ao contrário, um fenômeno de grande importância e de alto valor, enquanto meio de desenvolvimento da compreensão das crianças sobre a realidade atual. (PISTRAK, 1981, p.107)

 

 

4.1.2 O pensamento de Paulo Freire e os temas geradores

 

Na organização do ensino por ciclos de formação, assim como na proposta curricular do complexo temático, o professor passou a assumir, na perspectiva de uma vivência cotidiana, o papel daquele que iria materializar a construção dos conhecimentos com o aluno e a comunidade. A busca de uma alteração radical das relações hierárquicas, reduzindo a exclusão e o autoritarismo na escola, superando práticas educativas ingênuas materializa-se no que Freire (1991) chama de "reinvenção da escola". Uma das condições necessárias à viabilização desse processo de reestruturação curricular, é um sério investimento na formação permanente do educador, em seus mais diversos níveis, pois reinventar a escola pressupõe, também, reinventar a relação professor-aluno.

 

Dessa forma, no Projeto Escola Cidadã percebe-se a ênfase no papel decisivo do professor, como aquele que irá trabalhar para o desenvolvimento de práticas curriculares, voltadas para o processo de aprendizagem de seus alunos. A exigência de investimentos na formação dos profissionais passa a ser requerida, tendo como eixo principal a análise da prática pedagógica num processo de ação-reflexão-ação, propiciando condições para que o educador (Freire, 1991) crie e recrie a sua prática, através da reflexão sobre o seu cotidiano. O professor se articula a um movimento maior pela qualidade do ensino, no qual as condições de trabalho são levadas em consideração, não apenas como uma questão corporativa, mas para a efetivação de um fazer pedagógico baseado na reflexão crítica, no reconhecimento e na assunção da identidade cultural de todos os participantes desta prática. A relação pedagógica pressupõe uma interação entre o desejo de aprender do aluno, a vontade de conhecer e a tarefa do professor, que é a de incentivar a emergência deste desejo pelo aprender. Portanto, professor e aluno representam as extremidades de um processo que envolve a todos de forma intensa e ampla.

 

Paulo Freire (1996) utiliza a chamada "competência profissional" e o "papel da autoridade democrática" nas relações cotidianas em sala de aula. Estes elementos configuram sua teoria, que passou a assumir notoriedade a partir da difusão do chamado "método de alfabetização"(1980) que, diferentemente de outras propostas de cunho mecanicista, projetava levar a termo uma alfabetização direta, ligada à democratização da cultura e que servisse de uma experiência suscetível de tornar compatíveis a existência do sujeito trabalhador e o material que lhe era oferecido para a aprendizagem. A alfabetização era pensada como um ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores, como afirma Paulo Freire:

 

...uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura. (...)

(...) Procurávamos uma metodologia que fosse um instrumento do educando, e não somente do educador, e que identificasse – como fazia notar acertadamente um sociólogo brasileiro - o conteúdo da aprendizagem com o processo mesmo de aprender. (FREIRE, 1980, p.41)

 

Portanto, pensar a alfabetização era articular-se com a realidade dos educandos e do seu meio, buscando conexões com a realidade, no sentido de transformá-la. O tema gerador era buscado, quando da efetivação da metodologia de alfabetização e representava a procura pelo pensamento do homem sobre a realidade e a sua ação sobre esta realidade que estava em sua práxis. Todas as aspirações, motivos e objetivos contidos nas temáticas suscitadas pelos temas geradores eram consideradas significativas por representarem aspirações, motivos e objetivos humanos, que não representavam entidades estáticas, mas sim, as histórias vivas destes homens. E, justamente, esta dimensão da proposta freiriana foi assumida na concepção do complexo temático, impregnado de elementos do meio social, com articulações junto à comunidade escolar, criando condições para propiciar a ação sobre o mesmo.

 

A respeito da incorporação dos temas geradores na proposta Escola Cidadã, observa-se que Rocha (1995) coloca-os em destaque, resgatando-os dos referenciais teóricos apontados no documento publicado pela Prefeitura Municipal de São Paulo, procurando aproximá-los de uma proposta inicial, que foi apresentada aos professores da Escola Monte Cristo:

 

Resumindo, a opção curricular interdisciplinar da escola pelo tema gerador tem suas razões:

por propiciar um vínculo significativo entre conhecimento e realidade local;

por não ser uma abordagem curricular burocraticamente preestabelecida;

por envolver o educador na prática de "fazer e pensar currículo";

por relacionar realidade local com um contexto mais amplo;

por entender que o conhecimento não está pronto e acabado e que a escola é também local de produção de conhecimento;

por estabelecer uma relação dialética, entre os conhecimentos do senso comum e os já sistematizados;

por buscar uma forma interdisciplinar de apropriação do conhecimento. (ROCHA, 1995, p.19)

 

 

4.2. A Concepção de Currículo

 

A Escola Cidadã problematizou contradições existentes na sociedade que tornaram-se objeto de seu discurso pedagógico. O currículo passou a ser considerado como um espaço privilegiado nas lutas pela democratização da sociedade e o trabalho pedagógico da escola procurava permitir aos estudantes uma melhor compreensão de si, do outro, das diferentes culturas, das artes, das tecnologias e dos sistemas de produção da sociedade contemporânea. Tais possibilidades implicavam em redescobrir o vínculo entre a sala de aula e a realidade social (Arroyo, 1994): conjugando o aprender a aprender com o aprender a viver, participando e vivenciando sentimentos, tomando atitudes e escolhendo procedimentos. Esse novo direcionamento do trabalho educativo teve por finalidade garantir que a qualidade do ensino se mantivesse presente na sala de aula, como conseqüência da autonomia e da construção coletiva dos educadores e onde o discurso buscasse coerência com a prática. Destacava-se a importância dada ao contexto social, na relação saberes científicos/saberes populares, assim como na construção coletiva e consensual. A superação da visão dicotômica entre concepção e prática era atingida pelo caráter decisivo que a práxis assumia nas relações entre os diversos segmentos da comunidade escolar.

 

A organização curricular da Escola Cidadã, ao encaminhar-se para essa direção, passou a se preocupar com a qualidade dos conhecimentos vivenciados no cotidiano, permitindo aos alunos a participação em um novo modelo de escola e de currículo integrado, capaz de refletir o próprio fundamento da escola. Nesta dimensão, (Arroyo, 1995) afirma que a qualidade em educação pretendida estava representada por dois pontos destacados no movimento social e pedagógico dos últimos anos: o direito ao saber crítico e consciente e o direito a condições de trabalho mais democráticas que projetassem a qualidade de educação e as intervenções que alargassem a função social e cultural da escola. A retomada deste processo, junto ao papel desempenhado pelos educadores, tem se mostrado como uma ousada intervenção nas lógicas e nas estruturas do ordenamento de seus tempos, rituais e processos de trabalho e nas relações sociais de produção educacional.

 

A superação da cultura do fracasso e a retomada de uma discussão sobre os componentes do direito à formação básica e universal de crianças, adolescentes, jovens e adultos pressupunha o reconhecimento de ciclos diferenciados que definissem conteúdos, processos, experiências e vivências culturais. Cada ciclo tornava-se adequado a cada idade de formação por se constituir numa combinação íntima de conteúdos culturais e de vivências de formação intelectual, volitiva, artística, física e politécnica (Arroyo, 1997). Por isso, a ênfase na escola como experiência sociocultural e formadora recolocava como ponto central a relação entre a formação, as disciplinas e os tradicionais processos de avaliação. Os conteúdos escolares, a distribuição dos tempos e dos espaços evidenciavam, cada vez mais, a formação e a vivência sociocultural, tal como destaca Arroyo:

 

Essa ênfase na escola como experiência sociocultural, formadora, recoloca como central a relação entre a formação e as disciplinas e os tradicionais processos de avaliação.

(...) enfatizada a função formadora da escola ou o direito à educação básica, as próprias disciplinas, sua gênese e função passam a ser avaliadas, aprovadas ou reprovadas tendo por referência o direito à formação.

(...) Os conteúdos disciplinares, os domínios requeridos, a aprovação-reprovação só adquirem sentido enquanto materializam um percurso formador diferenciado conforme a idade e a vivência sociocultural. (ARROYO, 1997, p.24)

 

Coerente com esses pressupostos teóricos, o currículo proposto pela Escola Cidadã privilegia uma organização coletiva. O ponto de partida foi o questionamento e a análise da realidade local. A grade e a distribuição vertical das disciplinas escolares foram redimensionadas, tendo como pressuposto básico uma nova concepção para a organização do ensino e dos espaços-tempo na escola. O ano letivo deixa de ser o início e o final de uma etapa para ser visto sob uma outra perspectiva, na qual a lógica do ensino tem como referência o desenvolvimento cognitivo, priorizando a permanência e a continuidade do processo de ensino-aprendizagem e seu respectivo planejamento.

 

O currículo (Rocha, 1996a) passa a ser visto como um fenômeno histórico, resultado de forças sociais, políticas e pedagógicas que expressam a organização dos saberes vinculados à construção de sujeitos sociais, explicitando intenções e revelando graus diferenciados de consciência e de compromisso social. No processo dinâmico de ação e reflexão coletiva de conhecimentos já constituídos, os mesmos poderiam ser reafirmados, aprofundados ou reformulados de maneira consciente por todos os envolvidos para que os ajudassem em sua localização na comunidade de forma autônoma, crítica e solidária.

 

 

 

 

4.3 A concepção de interdisciplinaridade

 

 

O aprofundamento de questões teóricas relacionadas à prática educativa de todos os dias passou a exigir opções para as escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre que já trabalhavam na lógica dos ciclos de formação, por determinados referenciais capazes de viabilizar o projeto educacional assumido. E, assim, a busca pela síntese entre a participação popular e a construção do conhecimento era evidenciada nos desdobramentos da proposta, surgidos no cotidiano.

 

Durante a realização dos seminários de estudo com o grupo de professores da Escola Monte Cristo, o complexo temático exigia a explicitação de determinados conceitos. Foi chamado de " Compromisso dos Educadores com o Interdisciplinar" (SMED 1996, equipe multidisciplinar, sem autor especificado) a opção por encaminhar discussões nessa direção. Severino foi um dos autores estudados por este grupo de professores e que era apontado como uma fonte relevante ao afirmar:

 

Por isso mesmo o saber não pode se exercer perdendo de vista esta sua complexidade: só pode mesmo exercer-se interdisciplinarmente. Ser interdisciplinar, para o saber, é uma experiência intrínseca, não uma circunstância aleatória. Com efeito, pode-se constatar que a prática interdisciplinar do saber é a face subjetiva da coletividade política do sujeitos. (...)

Rompidas as fronteiras entre as disciplinas, mediações do saber, na teoria e na pesquisa, impõe-se considerar que a interdisciplinaridade é condição também da prática social. (SEVERINO, 1995, p.163)

 

Portanto, a busca pela garantia de processos constitutivos de aprendizagem efetiva do educando, na dimensão do conhecimento global, mostra-se ligada aos princípios de um currículo interdisciplinar. Pensar a interdisciplinaridade é garantir o acesso ao conhecimento, também, na perspectiva do aluno, mostrando-lhe as inúmeras possibilidades do ato de conhecer, não somente a partir de uma relação entre aquele que sabe, em oposição ao que pouco ou nada conhece, mas muito mais relacionada a processos investigativos e de construção de novas relações com o conhecimento e o contexto social, em um mundo de fronteiras cada vez mais tênues. A interdisciplinaridade, ao promover a qualificação, a formação e a ampliação dos conhecimentos envolvidos, cria a possibilidade de compreensão da realidade para que os envolvidos possam assumir uma posição crítica, provocando a interação entre os sujeitos e, ao mesmo tempo, sendo condição necessária para a sua própria efetivação.

 

O que se pretende em uma disposição interdisciplinar (Rocha, 1996b) não é anular a contribuição de cada ciência em particular, mas impedir que se estabeleça a supremacia de uma determinada ciência, em detrimento de outras, igualmente importantes. Convém ressaltar que as contribuições e trocas vão além da integração dos conteúdos das diferentes áreas do conhecimento. A meta principal (Pontuschka, 1993) é propor uma nova forma de organização das disciplinas, afastando-se de um tipo de currículo de coleção e aproximando-se de um tipo integrado de currículo com delimitações menos rígidas entre as diversas áreas do conhecimento. Parte-se da concepção de que as várias ciências devem contribuir para o estudo de determinados temas que orientariam todo o trabalho escolar. Estas articulações respeitam a especificidade de cada área do conhecimento, ou seja, a fragmentação necessária no diálogo inteligente com o mundo, cuja gênese se encontra na evolução histórica do desenvolvimento do conhecimento. Ao se respeitar os fragmentos de saberes, procura-se estabelecer e compreender a relação entre uma totalização em construção a ser perseguida e continuamente ampliada pela dinâmica de busca de novas partes e novas relações. É como se os fenômenos ou situações fossem vistos através de uma lente que os decompõe, de acordo com as diferentes luzes das diversas disciplinas que conhecemos: matemática, geografia, biologia, etc. Os conhecimentos revelam aspectos fragmentados da realidade que podem ser integrados permitindo melhor compreensão do fenômeno ou da questão a ser aprofundada.

 

Um dos aspectos que fundamentaram o movimento de reorientação curricular dos ciclos de formação foi a organização do eixo espaço e tempo. Os principais fatores que, tradicionalmente, levavam os alunos das classes populares à evasão e repetência da escola, serviram como marco referencial na elaboração de diretrizes para a proposta de ciclos de formação. Buscava-se um ensino voltado às especificidades destes alunos, capaz de romper com a lógica do ano letivo segmentado que exigia elevados índices de desempenho baseados na conquista de conteúdos programáticos. Esta concepção, cedeu lugar a uma aprendizagem voltada às reais necessidades dos alunos, efetivada através da organização curricular de cada ano-ciclo num movimento pedagógico flexível voltado para o sucesso escolar. O trabalho pedagógico interdisciplinar orientava os professores que direcionavam suas ações para o planejamento e avaliação contínuos na consecução de processos de aprendizagem diferenciados, com o objetivo de permitir aos alunos avanços significativos em suas aprendizagens pessoais e no grupo de colegas.

 

A partir do redimensionamento dado a estas questões, alterou-se a política de ingresso e de permanência, as abordagens metodológicas e a formação permanente dos educadores. O tempo foi tratado de forma igualitária na distribuição e construção do conhecimento pelas diferentes disciplinas, buscando-se totalizações sucessivas na compreensão da realidade, sem restringir-se aos limites físicos da escola, e, sim, envolvendo o ambiente natural e social da comunidade. O uso criativo, democrático e comunitário do espaço escolar buscava garantir o acesso e a permanência dos alunos e, de uma forma mais envolvente também nas relações em sala de aula, o que era possível de ser atingido com este novo movimento interdisciplinar para a organização dos saberes. Um dos assessores que contribuiu significativamente com estes estudos - Antônio Gouvêa - assim pronunciou em um dos Seminários Internacionais, promovidos pela Secretaria Municipal de Educação:

 

O caminhar pedagógico deve ser orientado por uma metodologia em que os saberes populares e científicos se relacionam e são construídos de forma histórica e contextualizada, cabendo ao professor mediar esse processo. O objetivo é desvelar as contradições sociais a que as classes populares estão submetidas, numa ação preferencialmente interdisciplinar. (GOUVÊA, 1996, p.212)

 

Numa disposição interdisciplinar, busca-se uma relação de reciprocidade, de mutualidade que possibilitará o diálogo entre os interessados, proporcionando trocas generalizadas de informações e de críticas, contribuindo para a reorganização do meio científico e institucional a serviço da sociedade e do homem. Dessa forma, possibilita-se uma relação significativa entre conhecimento e realidade, desfazendo uma abordagem curricular burocraticamente preestabelecida, envolvendo o professor na prática de um currículo elaborado dialeticamente estabelecendo relações entre a realidade local e o contexto mais amplo. Ao invés do professor polivalente, pressupõe-se a colaboração integrada dos diferentes especialistas para compor o objeto de estudo. Esta proposta interdisciplinar coloca o professor na condição de investigador (Collares, 1995). As relações entre teoria e prática tornam-se indissociáveis. Na medida em que a ação pedagógica torna-se um processo de intervenção na realidade local, o professor assume o papel de um investigador que irá reunir elementos desta realidade que possam indicar pistas sobre a direção a ser assumida no cotidiano escolar O professor, que tem diante de si uma turma de alunos, estará mobilizando a coleta de dados para promover a possibilidade de equilíbrios e desequilíbrios constantes no fazer e no pensar de seus alunos. O currículo procura se integrar a uma metodologia em que o conhecimento, na relação com as comunidades escolares, seja a síntese dos sujeitos envolvidos.

 

 

4.4 O Complexo Temático na Escola Cidadã

 

 

Com relação ao esquema curricular denominado Complexo Temático, percebe-se, principalmente, nas contribuições do pensamento de Pistrak e de Paulo Freire elementos capazes de elucidar seus pressupostos teóricos. Pistrak priorizava os temas que levavam em consideração a auto-organização dos alunos e os objetivos da escola, a partir da realidade social sem relacionar-se, apenas, com o plano pedagógico. Paulo Freire (1980), por sua vez, entendia que o tema gerador era "procurar o pensamento do homem sobre a realidade e a sua ação sobre esta realidade que está em sua práxis". Na transposição do conceito "complexos" da escola soviética e do "tema gerador" de Paulo Freire, passando pelas concepções de currículo e de interdisciplinaridade, a busca de uma reorientação curricular fundamentada nos princípios da Escola Cidadã provocava ampliações nos referenciais teóricos propostos, acrescidos com as contribuições de outros educadores contemporâneos e, também, por conta das peculiaridades do contexto social e cultural e da dinâmica de trabalho coletivo com os segmentos das comunidades escolares a serem atendidas .

 

Quando do início dos estudos sobre a nova proposta pedagógica para as escolas por ciclos de formação, sucederam-se na Escola Monte Cristo momentos de estudos que procuraram subsidiar os professores, quanto à definição do complexo temático. Uma das definições mais esclarecedoras era apresentada aos professores da Escola Monte Cristo por Rocha:

 

O termo "Complexo Temático" sugere semanticamente, tratar-se de uma designação proposta para "assuntos ou relações profundas" que levam à criação, à produção, ao desenvolvimento. Propõe uma captação de totalidade das dimensões significativas de determinados fenômenos extraídos da realidade e da prática social. Eis porque torna-se necessário enfatizar que o Complexo Temático não se encontra nos indivíduos isolados da realidade, nem tão pouco na realidade separada dos indivíduos e sua práxis. O Complexo Temático só pode ser entendido na relação indivíduo - realidade contextual." (ROCHA, 1995, p. 3)

 

A definição proposta para complexo temático propunha, num primeiro momento, abarcar as mesmas dimensões dos complexos de Pistrak, mas ampliava-se ao apresentar um currículo flexível, voltado para o mundo da cultura, com possibilidades de provocar a percepção e a compreensão da visão de mundo em que se encontravam todos os envolvidos, em torno de um objeto de estudo. Por isso, despontava a questão da realidade social como um grande desafio, já que não era comum a escola tradicional lidar com este universo de vida dos alunos, normalmente, colocado a margem das reflexões dos educadores.

 

As relações com o conhecimento propostas na definição do complexo temático pressupõe uma desacomodação nos referenciais pedagógicos para a organização dos conhecimentos, a este respeito um dos movimentos do complexo (Rocha, 1996a) representa com clareza suas implicações metodológicas:

 

MOVIMENTO DO COMPLEXO

(ROCHA, 1996a, p.26)

 

Definições Ponto de Partida

Pedagógicas

 

Fio Condutor

 

 

 

Reflexão

Análise

 

 

Objetivos/Princípios Necessidades

Campos Conceituais Experiências

Didática - Metodologia Pedagógica Vivências

Seleção de Conteúdos Relevantes

Processo de Avaliação

 

No processo de elaboração do complexo temático, a participação dos segmentos da comunidade escolar era pretendida na promoção de ações que levassem à elaboração e problematização dos conceitos de vida. A organização desse cotidiano era efetivada com princípios claros de aprendizagem construídos e apropriados em cada ciclo e na escola, tornando possível constituir elementos da prática pedagógica para a discussão e aprofundamento do fenômeno a ser desvelado, captando a direção entre o que ocorria e aquilo que se desejava, no que se referia às proposições do âmbito escolar.

 

 

4.4.1 O conceito de Campo Conceitual

 

 

Na sistematização do complexo temático, a organização dos conteúdos assume um papel destacado, entretanto, bastante diferenciado em relação a outras propostas curriculares. Parte-se da idéia de que estes constituem conceitos que, trazidos pelos alunos em sua "bagagem cultural", são consolidados nas interações com os colegas e socializados nas propostas pedagógicas, procurando romper a dicotomia entre aspectos teóricos e práticos. A definição para Campo Conceitual é assim apresentada por Rocha:

 

Chamamos, então, de Campo Conceitual o conjunto de conceitos que se dispõe à maneira de uma "teia-trama" intencional na qual estão integradas idéias que organizam as aprendizagens escolares. Muitas vezes, um outro conceito se repete diante de um novo Complexo Temático compondo um novo Campo Conceitual, fazendo com que os educandos participem do processo de elaboração e problematização dos conceitos, de maneira que fiquem cada vez mais cônscios de suas representações." (ROCHA, 1996 a, p.25)

 

Parte-se da idéia de que os conceitos são antes de tudo idéias emergentes decorrentes de problemas colocados pelo complexo temático e seu conjunto de princípios. Tais conceitos são oriundos de situações-problema concretas, apoiados em representações anteriores que os alunos trazem para o contexto escolar e que ali são problematizados. Os conceitos são consolidados nas interações e internalizados na vivência de situações cotidianas, procurando romper com a dicotomia entre os aspectos teóricos e os práticos.

 

De acordo com essa concepção, os conceitos são o resultado de construções feitas ao longo da vida, muito mais do que uma informação diária (Rocha, 1999). Tais construções significam informações da vida, referentes ao desenvolvimento pessoal de cada um. Isso quer dizer que o conceito não é próprio de qualquer uma das áreas do conhecimento como a História ou a Língua Portuguesa, por exemplo, é um conceito da vida e, como tal, deve integrar o estudo em sala de aula, tornando-se questão a ser problematizada suscitando novas discussões e indicativos para a transformação do meio social em que os alunos encontram-se inseridos.

 

Os conceitos não se apresentam de forma rígida e podem ser trabalhados simultaneamente. A cada nova situação, os educandos reorganizam, aprofundam e inter-relacionam os conteúdos que tornam possíveis a compreensão e a assimilação desses conceitos e, concomitantemente, do próprio complexo temático. Os conceitos ajudam a pensar o complexo porque permitem descrever sua relações internas e articulam uma coerência que lhe confere sentido, fazendo com que não se torne fechado em si mesmo, mas como uma parte interligada a outros complexos temáticos, atravessado por um conjunto de conceitos e situações que contribuem para lhe dar significação e que são o seu conteúdo. O esquema apresentado por Rocha mostra-se bastante esclarecedor a este respeito:

 

 

 

 

SELEÇÃO DOS CONTEÚDOS

CONTEÚDOS CICLOS

 

 

 

 

PRINCÍPIO DAS ÁREAS

ESTRUTURA DO PENSAMENTO (aprendizagem/desenvolvimento cognitivo)

(concepção interacionista sócio-cognitivista)

(ROCHA, 1996, p.16)

 

 

4.4 As Fontes Diretrizes do Currículo na Escola Cidadã

 

 

O complexo temático, ao ser compreendido como um "olhar" sobre o fenômeno social, contempla aspectos que estão muito além de um fenômeno escolar, encontrando-se intrinsecamente relacionados com outras dimensões que encaminhem na apropriação de elementos capazes de fornecer informações necessárias sobre os fenômenos mais significativos ligados à comunidade escolar. Essas informações são representadas pelas Fontes Diretrizes, que integram as diversos campos do conhecimento: Fonte Sócio-Antropológica, Fonte Epistemológica, Fonte Filosófica e Fonte Sócio-Psicopedagógica. Os elementos que caracterizam as quatro Fontes Diretrizes sempre estiveram presentes quando da realização desta trajetória, apesar da nomenclatura ter sido assumida no decorrer dos anos subseqüentes. O estabelecimento das Fontes Diretrizes contou com a contribuição de vários autores, tais como: Pistrak, Paulo Freire e Vygotsky (Rocha,1999). Entretanto, é importante ressaltar que as Fontes Diretrizes e o complexo temático mantêm um enfoque original na proposta desenvolvida na Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre.

 

A partir da efetivação das Fontes Diretrizes, o complexo temático traça sua linha de ação percorrendo caminhos para desencadear um olhar global sobre o que é importante ser selecionado. É preciso considerar que toda informação a ser sistematizada para os alunos deve levar em conta suas características individuais, partindo das necessidades de desenvolvimento e das exigências da realidade contextual em que estão inseridos. Entende-se que, ao combater a fragmentação, busca-se cada vez mais a interdisciplinaridade, enquanto construção histórico-social das relações entre as áreas de conhecimento que permita uma equalização no que se refere à importância atribuída às áreas. Um dos méritos que pode ser atribuído às Fontes Diretrizes é a possibilidade de construir um "diálogo" entre as mesmas, provocando interferências mútuas que fortalecem o debate pedagógico. Dessa forma, acredita-se que o aluno possa avançar, de uma visão autocentrada para uma compreensão global dos fenômenos, do isolamento para o convívio grupal, do saber ideologizado para a construção do conhecimento.

 

 

4.4.1 A Fonte Diretriz Sócio-Antropológica

 

 

A Fonte Sócio-Antropológica teve sua origem nas idéias de Paulo Freire e Carlos Rodrigues Brandão (Rocha, 1999), que analisam e destacam a necessidade de trazer a cultura popular para dentro da escola e tornar este movimento articulado com o conhecimento acumulado pela humanidade. Estes autores criticam fortemente o fato do conhecimento ter sido, tradicionalmente, apresentado aos educandos como uma única verdade. Portanto, esta Fonte tem como objetivo principal difundir a concepção de pluralidade cultural e com isto permitir a compreensão deste universo tão variado e contraditório, fonte viva de novas descobertas, tão importantes para nossos alunos. A realidade sociocultural dos grupos humanos se constitui de conceitos, idéias, significados e conhecimentos, que se articulam e organizam as construções em nível social e individual, facilitando a construção coletiva das representações culturais. A vivência desta perspectiva requer um aprofundamento em relação aos processos investigativos de apreensão da realidade social, na qual estão inseridos os sujeitos envolvidos no processo pedagógico. Desta forma, a Fonte-Diretriz se amplia, incorporando-se ao processo de elaboração do projeto curricular conforme aponta Medeiros:

 

A escola deve ser o espaço onde o conhecimento da prática cultural deve ser ressignificado na relação com o conhecimento sistematizado e com outros contextos, cuja análise a escola propicia. Fica claro, a partir disso, que o desdobramento desta fonte, no cotidiano da escola, não deve ser confundido ou restrito à pesquisa que a escola faz para organizar o complexo temático e, a partir daí, nos limitarmos a uma discussão metodológica e organizativa. (MEDEIROS, 1998, p. 12)

 

Portanto, nessa concepção, a prática interdisciplinar do saber é uma forma ao mesmo tempo prático-teórica e teórico-prática de compreender a realidade sociocultural e sua estrutura é mediada pela ação múltipla e singular dos indivíduos. O complexo temático congrega, as possíveis reflexões levantadas por todos os segmentos da comunidade escolar na perspectiva das quatro Fontes Diretrizes. Entretanto, pelas inúmeras tendências que a sua elaboração tem assumido nas diversas escolas, tem havido a primazia desta Fonte sobre as demais (Rocha, 1999). Apesar disso, é preciso ressaltar que este não é o objetivo da proposta porque se acredita que todas as Fontes são parte de um todo indissociável: o fenômeno social a ser desvelado.

 

 

4.4.2 A Fonte Diretriz Sócio-Psicopedagógica

 

 

No que se refere à Fonte Sócio-Psicopedagógica, figuram as questões de cognição, no que tange aos processos internos do sujeito e na relação entre desenvolvimento e aprendizagem. A partir do reconhecimento dos fundamentos que distinguem o seu próprio crescimento em cada etapa (infância, pré-adolescência e adolescência) o professor terá mais subsídios para entender o aluno em suas características inerentes ao seu desenvolvimento. Quanto aos aspectos definidores a respeito desta Fonte, Tito aponta o seguinte:

 

É com a fonte diretriz sócio-psicopedagógica: conhecimento interacionista do desenvolvimento cognitivo que busco trabalhar. Nesta fonte, percebo os fundamentos da caracterização das crianças em cada etapa, para que compreendendo-as e respeitando-as, dêem o tom da complexificação do saber a ser produzido, o combate a fragmentação do conhecimento e a necessidade de constituir o trabalho coletivo com os alunos e na escola como um todo. Entretanto, as contribuições das demais fontes e seus entrelaçamentos estão presentes. (TITO, 1998, p.24)

 

Na fundamentação teórica, determinados autores despontaram através de suas contribuições: Jean Piaget, Lev Vygotsky, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. A concepção de aprendizagem da Escola Cidadã encontrou em Piaget e Vygotsky seus fundamentos, sendo ao lado do referencial da educação popular, da interdisciplinaridade, o alicerce das suas ações político-educacionais.

 

 

4.4.3 A Fonte Diretriz Epistemológica

 

 

Por sua vez, a Fonte Epistemológica está intimamente relacionada com as demais, ampliando a reflexão sobre o conteúdo da escola com outros paradigmas, refletindo a respeito da relação entre as diversas disciplinas. O trabalho cotidiano é encarado como a construção dos conceitos que é visto como mais importante do que a "quantidade de conteúdos" a serem desenvolvidos. Busca-se nos conteúdos aqueles que são apropriados para desenvolver os conceitos e a temática proposta pelo complexo temático e demais discussões propostas na escola. A interdisciplinaridade é apontada como o movimento central desta Fonte. Nessa dimensão, surge o trabalho com conceitos científicos e cotidianos, até atingir o nível de generalizações e aplicações em outras situações conforme Costa aponta:

(...) o conhecimento não pode ser fragmentado, mas sim ser visto em sua totalidade, tanto no debate filosófico sobre a ciência, quanto nas pesquisas, ou na escola onde trabalhamos com todo esse conhecimento que vem sendo construído pelo homem e constituindo o homem em sua história (COSTA, 1999, p.17)

 

Com base nos pontos defendidos por essa Fonte, organizam-se as turmas de alunos, de acordo com a faixa etária. Acredita-se que, ao mapear os grupos com características semelhantes, estes tenderão a vivenciar semelhante desenvolvimento na construção dos saberes. O processo de avaliação, por sua vez, é encarado como a possibilidade de garantir a aprendizagem dos alunos, pois as reflexões a respeito destas são retomadas, continuamente, com o objetivo de delinear as próximas ações, no decorrer do ano-ciclo. A avaliação é redirecionada e passa a ter um caráter formativo, ao ser referência para os encaminhamentos posteriores, prevendo a participação dos diferentes segmentos escolares, no sentido de buscar critérios totalizantes para analisar a aprendizagem. Destaca-se, ainda o seu caráter especializado, nos casos em que houver necessidade de um apoio individualizado de especialistas.

 

 

4.4.4. A Fonte Diretriz Filosófica

 

 

A Fonte Filosófica mostrou-se mais claramente consolidada com a realização do Congresso Constituinte Escolar, que explicitou os princípios da chamada educação voltada para as classes populares, baseada na participação, construção da cidadania e gestão democrática de acordo com Silva:

 

Trata-se da escola enquanto parte do corpo social dar a sua contribuição, eliminando as práticas autoritárias, desenvolvendo no seu interior uma cultura de participação, de decisões coletivas, de convivência com as diferenças. (SILVA, 1995a, p.09)

 

Essa Fonte Diretriz tem se mostrado ligada ao conjunto de princípios que consolidaram a proposta político-pedagógica da Escola Cidadã, desde a elucidação dos princípios de autogestão e autonomia e de opção por transformação das condições socais a que estavam submetidas as chamadas "classes sociais marginalizadas socialmente". Neste sentido, Rocha, destaca:

 

E os próprios princípios se tornaram para a Rede a Fonte Filosófica da Rede. (...) A nossa visão de escola, com toda a questão da gestão democrática, das relações de convivência que tem de ser estabelecidas, nos movimentos participativos, da relação da escola com a comunidade mais ampla, com a cidade. (ROCHA, 1999, p.6)

 

Portanto, essa Fonte Filosófica tem contribuído para dar sustentabilidade ao projeto pedagógico, com base no estabelecimento de princípios democráticos e de participação em todas as instâncias de atuação das escolas municipais de Porto Alegre.

 

 

4.5 O decálogo de elaboração do Complexo Temático

 

 

O decálogo foi proposto como uma alternativa organizadora dos diversos momentos necessários para a elaboração do complexo temático, partindo das diretrizes apontadas nas quatro fontes originais. As etapas do decálogo visam à apropriação dos elementos conceituais adequados para uma ação coordenada, favorecendo a intervenção dos sujeitos educadores e demais representantes da comunidade. Dessa forma, haveria clareza quanto às possibilidades de avanço no processo de elaboração do complexo. O tempo para sistematização destas etapas é variado e determinado pela regularidade nos encontros de planejamento, no tempo destinado às reflexões e, posteriormente, às sistematizações e às plenárias.

O esquema do decálogo proposto por Rocha é assim constituído:

 

1ª etapa: Investigação de interesses do coletivo em cada ciclo.

2ª etapa: Definição dos complexos no coletivo do ciclo.

3ª etapa: Formulação de princípios por área do conhecimento.

4ª etapa: Elaboração do plano de trabalho da área de conhecimento e de cada ciclo.

5ª etapa: Compatibilização e reelaboração no coletivo do ciclo.

6ª etapa: Seleção do conjunto de idéias que serão trabalhadas por ano em cada ciclo.

7ª etapa: Plenária de socialização do que cada ano selecionou e definiu como conteúdo do período.

8ª etapa: Definição coletiva das linhas de ação.

9ª etapa: O coletivo da escola busca ou insere parceria no processo.

10ª etapa: Problematização da realidade. (ROCHA,1996 a, p.24)

 

Dessa forma, o decálogo procura resguardar a dimensão dialética de elaboração do complexo temático com o intuito de favorecer os momentos de trocas e de avaliação sistemática entre os educadores sobre a viabilidade do mesmo.

 

Além disso, após o cumprimento das etapas de execução do decálogo, torna-se necessário que o coletivo de educadores defina o tempo de duração do complexo temático, no que se refere a sua execução na escola, que poderia oscilar de um mês até um ano, dependendo das determinações e dos interesses do grupo.

 

O enfoque dado à questão da interdisciplinaridade, na proposta da escola por ciclos de formação, coloca em destaque a valorização do contexto. A incidência da perspectiva sistêmica na compreensão de fenômenos relacionados a aprendizagem dos alunos e no aprofundamento de questões cognitivas nas diversas áreas relacionadas ao conhecimento de si mesmo e do meio em que se encontra inserido, merece destaque, sendo apresentado a seguir, pela possibilidade de vislumbrar novas possibilidades para a aprendizagem dos alunos em situação de desvantagem.

 

 

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5. Do Pensamento Sistêmico à Teoria de Auto-organização: repensando conceitos de aprendizagem

 

Outra vez te revejo,

Cidade da minha infância pavorosamente perdida ...

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui ...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,

Uma série de contas-entes ligadas por um fio memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?"

(Fernando Pessoa, 1998, p. 168)

 

 

5.1 O Pensamento Sistêmico

 

 

Durante a primeira metade do século XX, vários estudiosos - dentre os quais muitos biólogos – contribuíram na organização de um novo modo de pensar: o pensamento sistêmico. De acordo com essa perspectiva, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo que nenhuma das partes possui. Estas surgem das interações e das relações entre as partes. Tais propriedades são destruídas quando o sistema é dissecado, física e teoricamente, em elementos isolados. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas e só podem ser entendidas dentro do contexto mais amplo. A relação entre as partes e o todo foi invertida, em relação ao paradigma cartesiano e o grande impacto para a ciência, de todo este século, foi a percepção de que os sistemas não podem ser entendidos pela parcialização. O pensamento sistêmico é "contextual", o que é o oposto do pensamento analítico, que visa à fragmentação.

 

Todos os conceitos sistêmicos referem-se ao pensamento contextual e processual. Ao contrário da concepção científica cartesiana que apresenta estruturas fundamentais e, em seguida, forças e mecanismos por meio dos quais interagem dando origem a processos, na concepção científica toda estrutura é vista como a manifestação de processos subjacentes num pensamento processual. Há determinados critérios que definem o pensamento sistêmico. Primeiramente, desponta o critério que aponta a mudança das partes para o todo. Os sistemas vivos são vistos como totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas a partes menores. Suas propriedades essenciais ou "sistêmicas" são propriedades do todo que nenhuma das partes possui. Elas surgem das "relações de organização" das partes, ou seja, de uma configuração de relações ordenadas que é característica dessa determinada classe de organismos ou sistemas. Outro critério aponta para a capacidade de deslocar a própria atenção de um lado para o outro em níveis sistêmicos, isto é, em todo o mundo vivo existem sistemas aninhados dentro de outros sistemas que aplicam os mesmos conceitos a diferentes níveis sistêmicos. Os fenômenos observados exibem propriedades que não existem em níveis inferiores, indicando graus diferenciados de complexidade. Portanto, as propriedades das partes não são propriedades intrínsecas e só podem ser entendidas dentro do contexto do todo maior. Desse modo, o pensamento sistêmico é pensamento contextual e explicar os fenômenos considerando o seu contexto significa explicá-las considerando o seu meio ambiente.

 

 

 

 

5.1.1 Os Primórdios da Teorização Sistêmica

 

 

Entre os anos 10 e 20 do século XX, o russo Alexander Bogdanov desenvolveu uma teoria sistêmica chamada de tectologia que foi a primeira tentativa na história da ciência para chegar a uma formulação sistemática dos princípios de organização que operam em sistemas vivos e não-vivos. Apesar da universalidade das idéias propostas por Bogdanov (Capra, 1994) ele foi mal-entendido entre seus contemporâneos, inclusive pelos filósofos marxistas de sua época e, por isso, suas obras foram proibidas de serem publicadas durante quase meio século na União Soviética.

 

Na década de 40, o biólogo Ludwig von Bertalanffy juntou-se a um grupo de cientistas e filósofos, conhecidos como o "Círculo de Viena" e dedicou-se ao desenvolvimento de pesquisas que substituíssem os fundamentos mecanicistas da ciência, pela visão holística. Este estudioso procurou estabelecer a sua teoria geral dos sistemas sobre uma sólida base biológica e enfatizou a diferença crucial entre sistemas físicos e biológicos. Nesta perspectiva, os organismos vivos eram vistos como sistemas abertos que não podiam ser descritos pela termodinâmica clássica. Os sistemas eram "abertos" porque precisavam se alimentar de um fluxo contínuo de matéria e de energia extraídas do seu ambiente para permanecerem vivos. Portanto, a ciência clássica teria de ser complementada por uma nova termodinâmica de sistemas abertos. Devido às técnicas matemáticas requeridas para essa expansão da termodinâmica não estarem disponíveis para Bertalanffy, a sua nova formulação de sistemas abertos teve que esperar até a década de 70. Nesta época, o advento de uma nova matemática nos estudos de Illya Prigogine repensou as visões científicas de ordem e desordem, que resultaram na teoria de auto-regulação das estruturas dissipativas. Estas serviram de impulso para a difusão das idéias de Bertalanffy. Com o advento da cibernética, na década de 40, o aspecto processual foi retomado, tal qual figurou nos seus escritos.

5.2 As Contribuições da Cibernética

 

 

O movimento da cibernética teve o seu início durante a Segunda Guerra Mundial quando um grupo de matemáticos, neurocientistas e de engenheiros - entre eles: Norbert Wiener, John von Neumann, Claude Shannon e Warren McCulloch - reuniram-se com o desafio maior de descobrir os mecanismos neurais subjacentes aos fenômenos mentais e expressá-los em linguagem matemática explícita. Estes pesquisadores, inicialmente, eram financiados pelos militares que lidavam com problemas de rastreamento e abate de aviões e que, também, desejavam desvendar os mistérios do cérebro, isto é, quais as suas capacidades reais, mesmo quando lesionados ou submetidos a situações adversas, como durante as guerras.

 

Wiener editou no ano de 1948 o livro Cybernetics que era uma síntese de várias idéias suas e de outros autores interligados. Nesta obra, definiu como cibernética todo o campo da teoria do controle e da comunicação seja na máquina ou no animal, em que ficou demonstrado avanços na compreensão do sistema nervoso humano, do computador eletrônico e da operação de outras máquinas. Talvez uma das contribuições significativas deste autor tenha sido a compreensão de que o sistema nervoso central funciona como um todo integrado, no qual processos circulares emergem dos músculos e reentram no sistema nervoso pelos órgãos sensoriais. Além de Wiener, outros cientistas desenvolveram pesquisas que figuram nesta obra. Dentre estes, destacam-se as contribuições de Karl Lashley, que defendia uma organização neural constituída de unidades sempre ativas, hierarquicamente organizadas com o controle emanado do centro e não de estimulação periférica como propunham as análises comportamentalistas. Segundo este autor, os problemas levantados pela organização da linguagem seriam característicos de quase todas as outras atividades cerebrais e, dessa forma, desafiava a análise comportamental que sempre relutou em investigar a linguagem por causa de sua complexidade e relativa "invisibilidade" como uma forma de comportamento.

 

A este respeito é importante destacar o desafio frente ao behavorismo, que despontou desde o início dos estudos, pelos autores envolvidos com a cibernética. Durante as décadas de 1920, 1930 e 1940 o behavorismo exerceu domínio em vários campos da ciência. Acreditava-se que a ciência do comportamento, conforme delineada por estudiosos como B. F. Skinner, E. L. Thorndike e J. B. Watson, era capaz de explicar tudo que um indivíduo poderia fazer, como também as circunstâncias nas quais poderia fazê-lo. O que o sujeito pensava era considerado irrelevante deste ponto de vista, a não ser que o pensamento fosse simplesmente redefinido como comportamento oculto. Dessa forma, os modelos mecanicistas baseados no arco reflexo poderiam explicar a atividade humana. Os chamados behavoristas seguiam um modelo científico que era definido por algumas condutas específicas. Portanto, os estudiosos interessados nas ciências do comportamento deveriam limitar-se ao uso de métodos públicos de investigação, isto é, aqueles capazes de permitir a qualquer cientista aplicar e quantificar os elementos observáveis de uma pesquisa. Em segundo lugar, a atenção desses pesquisadores deveria permanecer concentrada, estritamente, nos comportamentos observáveis, isto é, tópicos que envolvessem a mente, o pensamento, a imaginação, os desejos, as intenções ou emoções deveriam ser descartados. Por fim, outro ponto marcante era a crença na supremacia e no poder dominante do meio ambiente. Os sujeitos da pesquisa eram vistos como refletidores passivos de várias forças e fatores de seu ambiente. Assim, questões a respeito da natureza da linguagem, do planejamento, da solução de problemas, da imaginação humana e assuntos afins eram frontalmente rejeitados por caracterizarem-se como elementos da subjetividade difíceis de serem mensurados.

 

Diante da grande aceitação que os pesquisadores comportamentalistas tinham junto à comunidade científica, aqueles interessados em aprofundar questões relativas ao estudo da mente, organizaram simpósios e conferências em círculos restritos de participantes com o objetivo de apresentarem o resultado de suas pesquisas. As possíveis aproximações criadas pela discussão entre as diversas áreas da ciência, que os pesquisadores representavam, eram organizadas a partir de consistente fundamentação teórica com o objetivo de alcançar melhores chances de aceitação, quando da divulgação no meio acadêmico e científico. A exemplo disto, o arcabouço conceitual da cibernética foi desenvolvido numa série de lendárias reuniões na cidade de Nova Iorque, conhecidas como "Conferências Macy" ou "Conferência sobre Cibernética". Estes encontros, que compuseram uma série de dez, realizados anualmente, eram constituídos de longos diálogos interdisciplinares que envolveram os participantes em dois núcleos. O primeiro se formou em torno dos ciberneticistas originais e compunha-se de matemáticos, neurocientistas e engenheiros. O outro grupo congregava os cientistas das ciências humanas e tinha em Gregory Bateson e Margaret Mead os representantes mais expressivos. A discussão de se atingir uma nova compreensão da mente e do cérebro permaneceu no centro das interlocuções durante estes encontros.

 

O uso da lógica matemática para entender o funcionamento do cérebro e das analogias entre o computador e o cérebro dominaram a visão de cognição dos ciberneticistas nas três décadas subseqüentes aos encontros Macy. As discussões ali travadas serviram como referencial para os estudos de pesquisadores em muitas áreas. Dentre estas, destaca-se o advento das Ciências Cognitivas.

 

 

5.2.1 A Primeira "Revolução Cognitiva"

 

 

A exemplo dos ciberneticistas, um grupo de cientistas representantes de várias disciplinas organizou-se em um congresso intitulado "Mecanismos Cerebrais do Conhecimento" (Gardner, 1996) patrocinado pelo Fundo Hixon, em setembro de 1948. Este congresso pretendia facilitar as discussões sobre a forma pela qual o sistema nervoso controlava o comportamento. Nesta oportunidade, surgiram discussões a respeito das comparações entre o cérebro e o computador eletrônico, processamento de informação e o comportamento humano, como resultante de funções cerebrais. O Simpósio Hixon foi uma das muitas conferências realizadas por cientistas de orientação cognitiva, durante as décadas de 1940 e 1950, que afirmaram as ligações entre o cérebro e o computador. Este evento pode ser colocado junto a outros que aconteceram na mesma direção, como os passos iniciais da chamada "ciência cognitiva", movimento que tinha como objetivo principal o estudo da mente humana a partir do isolamento dos processos cognitivos, e dessa forma, rompia radicalmente com os princípios do behavorismo, teoria predominante naquela época. O estudo dos algoritmos (seqüência de procedimentos), o uso de calculadoras, de circuitos elétricos e a cibernética eram temas aprofundados pelos cognitivistas. Estes princípios, que orientavam os seus estudos, aproximava-os da defesa levantada pela cibernética que tinha a intenção de avançar no estudo de novas capacidades humanas. Ao mesmo tempo, havia um aspecto que os distinguia deste grupo: o retorno a problemas filosóficos centrais que remontavam ao tempo da Grécia Antiga, tais como a questão da linguagem, as noções de espaço-tempo, o desenvolvimento motor, a memória e a causalidade.

 

Para uma boa parte dos estudiosos envolvidos com esta temática, o ano de 1956 é aceito como a data que marcou o início da primeira revolução cognitiva. Entretanto, para uma formação elucidativa passou-se por um longo período de estudos, que resultou na utilização do termo somente no início dos anos 70. Uma definição precisa a este respeito foi colocada por Howard Gardner, da seguinte forma:

 

Defino a ciência cognitiva como um esforço contemporâneo, com fundamentação empírica, para responder questões epistemológicas de longa data – principalmente aquelas relativas à natureza do conhecimento, seus componentes, suas origens, seu desenvolvimento e seu emprego. Embora o termo ciência cognitiva seja às vezes ampliado, passando a incluir todas as formas de conhecimento – tanto animado como inanimado, tanto humano como não humano – aplico o termo sobretudo a esforços para explicar o conhecimento humano. Interessa-me saber se questões que intrigavam nossos ancestrais filosóficos podem ser definitivamente respondidas, ilustrativamente reformuladas, ou permanentemente abandonadas." (GARDNER, 1996, p.19)

 

A ênfase nos estudos interdisciplinares, com o envolvimento de tantas áreas do conhecimento humano, foi um aspecto marcante na constituição da ciência cognitiva, dentre as quais destacam-se as contribuições nas áreas: da lingüística (Roman Jakobson), da neuropsicologia (Donald Hebb), da antropologia (Gregory Bateson), da ciência da computação (Allen Newell e Herbert Simon) e da biologia e neurofisiologia (Jerome Lettvin e Humberto Maturana). Em realidade, pode-se afirmar que estas são algumas das "ciências cognitivas", envolvidas na primeira revolução cognitiva. A proposição de buscar, em diversos campos da ciência, referenciais teóricos consistentes, gerou um movimento que permitiu uma nova compreensão de temas já pesquisados, desde longa data, e por outro lado, permitiu estabelecer pontos de contato com outras ciências que passaram a se ocupar de questões relativas aos processos cognitivos, sob novos enfoques. A este respeito, pode-se citar a formulação da ciência do processamento de informação que dedicou-se à simulação de processos cognitivos. A inteligência artificial, por sua vez, ocupou-se em aprofundar os estudos relativos ao processamento de informação e a robótica. No campo da psicologia, um dos acontecimentos mais representativos foi o surgimento do Centro de Estudos Cognitivos por Jerome Bruner e George Miller, nos anos 60, que aprofundaram conceitos difundidos pelas ciências cognitivas, com destaque para as questões relativas ao comportamento humano e a linguagem.

 

Há um aspecto que foi e é gerador de grande controvérsia na forma de atuação dos cientistas cognitivos: a representação das questões internas do sujeito. Alguns dos cientistas que participavam do movimento entendiam que fatores como emoção, história ou contexto de vida nunca poderiam ser explicáveis cientificamente. Demonstravam tendência em desconsiderar os aspectos históricos, sociais ou culturais que cercassem qualquer pensamento ou ação do sujeito. Outros críticos concordavam que estes aspectos estavam na essência da experiência humana e deveriam ser incorporados aos modelos de pensamento e comportamento. Apesar da polêmica criada, as características definidoras da primeira revolução cognitiva, tem demonstrado a predominância de um modo de pensar que rejeita a "moldura do método" e da metafísica da tradição experimentalista, embora mostrasse a dificuldade em estudar processos e estados cognitivos que envolvessem aspectos considerados "subjetivos".

 

 

5.2.2 A Segunda "Revolução" Cognitiva

 

 

Com respeito aos aspectos que definem a segunda revolução cognitiva, pode-se afirmar que a mesma partiu de uma crítica radical, relativa à ciência cognitiva e diverge desta no que se refere à cultura e aos afetos. Dentre os fatores que levaram à emergência de uma "nova psicologia cognitiva" estava a constatação por teóricos interdisciplinares - dentre estes os antropólogos e filósofos - quanto à omissão em desenvolver estudos relacionados aos processos e estados cognitivos. Para muitos cognitivistas da primeira revolução os processos mentais eram inacessíveis à observação pública, o que na realidade, passou a representar uma contradição em uma de suas preocupações básicas que era a de estudar o comportamento humano. Dessa forma, surgia uma aproximação entre os comportamentalistas e os cientistas cognitivistas, pois ambos passavam a defender a metafísica cartesiana da mente, apesar da referência aos processos mentais proposta por estes cognitivistas, em oposição ao antigo paradigma da psicologia experimental. Por certo, esta contradição foi um dos fatores mais preponderantes que levou à consolidação da segunda revolução cognitiva, enquanto paradigma que levou a considerar a mente, além de uma entidade cartesiana, selada em sua própria subjetividade individual e autocontida. A vida mental passou a ser encarada como uma atividade dinâmica empreendida por sujeitos que estão localizados em uma faixa de discursos em constante interação e, em certas posições, que lhe permitem formar subjetividades relativamente integradas e coerentes para si mesmos. A mente passa a ser vista como o ponto de junção de uma grande variedade de influências estruturadoras, cuja natureza pode ser dimensionada para além daquela oferecida pelo estudo de organismos individuais. Os discursos, os significados, as subjetividades e os posicionamentos, passam a ser considerados, pois são nestas dimensões que os fenômenos psicológicos existem. Os conceitos, a base do pensamento, são expressos por palavras e essas localizam-se nas linguagens, que são usadas para a realização de uma imensa variedade de tarefas práticas, cerimoniais e comunicativas que se constituem em formas de vida ensinadas e apreendidas.

 

A linguagem passa a ser vista como um conjunto integrado de símbolos que pode representar uma determinada mensagem. Neste sentido, a capacidade discursiva é que vai ajudar a compreender os processos cognitivos subjacentes. A respeito dos princípios fundamentais da segunda revolução cognitiva, cumpre ressaltar o resumo apresentado Harré e Gillett:

 

1. Muitos fenômenos psicológicos devem ser interpretados como propriedades ou características do discurso e este discurso pode ser público ou privado. Como discurso público, é comportamento; como privado, é pensamento.

2. Usos individuais e privados dos sistemas simbólicos, os quais nesta visão constituem o pensamento, são derivados de processos discursivos interpessoais, que são a principal característica do ambiente humano.

3. A produção de fenômenos psicológicos, tais como emoções, decisões, atitudes, exibições da personalidade, no discurso, depende da habilidade dos atores, de sua posição moral relativa na comunidade e das histórias que se desdobram." (HARRÉ; GILLETT, 1999, p.29)

 

Os representantes da segunda revolução cognitiva negam que os mecanismos da mente estejam inacessíveis. Segundo estes, existe um "mundo subterrâneo" de atividade mental por trás do discurso, no qual o sujeito elabora e descobre as coisas de um mundo privado. Portanto, os mecanismos das mentes individuais estão disponíveis a nós, daquilo que criamos conjuntamente nas práticas discursivas e no estabelecimento das linguagens.

 

Esta nova corrente da psicologia, tem em Wittgenstein um de seus representantes, em seus escritos da parte final de sua obra. Este autor percebeu que a atividade mental não é essencialmente um conjunto cartesiano ou interno de processos, mas uma gama de movimentos ou técnicas definidas contra um fundo de atividade humana governado por regras informais. Estas regras referiam-se àquelas que os sujeitos, realmente, seguem e que são evidentes no uso cotidiano das palavras. Os conceitos, a base do pensamento, são expressos por palavras e essas localizam-se nas linguagens, que são usadas para a realização de uma imensa variedade de tarefas. Este aspecto da filosofia mais avançada de Wittgenstein, repercutiu intensamente no que veio a constituir-se, ao final dos anos 80 e anos 90, como a segunda revolução cognitiva, que apresentava a centralidade do discurso como um de seus temas conceituais.

 

Cumpre ressaltar as contribuições de Gregory Bateson. Apesar deste autor não estar totalmente vinculado ao movimento da segunda revolução cognitiva, a sua teoria apresenta pontos relevantes que contribuíram significativamente para a elucidação dos pressupostos teóricos, aqui defendidos. Gregory Bateson desenvolveu a concepção de "processo mental", proposta que no âmbito de um movimento intelectual abordava o estudo científico da mente e do conhecimento, a partir de uma perspectiva interdisciplinar sistêmica, que foi além dos referenciais tradicionais da psicologia e da epistemologia. Bateson afirmou que a mente era um agregado de partes ou de componentes em interação, em que a interação entre partes da mente era desencadeada pela diferença. As diferenças eram vistas como características objetivas do mundo, embora nem todas as diferenças fossem perceptíveis. Além disso, o referido autor propunha que as perturbações provenientes do meio ambiente, desencadeavam mudanças estruturais nos organismos vivos. Dessa forma, Bateson defendia que a cognição envolvia representações mentais de um mundo objetivo que eram enviadas de um organismo para outro e, em seguida, eram codificadas e transformadas em representações mentais. A mente, em algum sentido, foi encarada como uma construção social, pois os nossos conceitos surgem a partir do nosso discurso e moldam o modo como pensamos. Isto vale para os conceitos que envolvem o que está a nossa volta e, também, para os conceitos que envolvem nossas próprias vidas mentais. Portanto, o modo como colocamos a mente em termos de conceitos é um produto dos conceitos disponíveis dentro do nosso discurso. Nesse contexto, podem ser incluídos os sentimentos e emoções como o amor e a paixão. Esses significados trazem vínculos adicionais em termos de reações, ações e expectativas ligados aos posicionamentos com os quais estão associados. Estes eventos são reconceituados, de acordo com a psicologia discursiva, em que um jogo dinâmico entre os significados invocados na compreensão de uma situação é uma representação distanciada desta. Os estudos de Bateson seguiram até este ponto, sendo que os critérios que apontava como processos mentais sofreram críticas, pois seriam critérios de consciência, aspectos de sua teoria que ele não pôde desenvolver em vida.

 

 

5.3 As Teorias de Auto-Organização

 

 

Apesar de inexistir uma concepção única de auto-organização, pode-se afirmar que estas mantêm uma diferenciação básica em relação às teorias clássicas, pois partem da premissa de que as ciências naturais clássicas têm se mostrado, ao longo da história, incapazes de resolverem de forma isolada a dicotomia "corpo X matéria", tal como demonstraram os racionalistas. A idéia de um padrão de organização, isto é, uma configuração de relações características de um sistema em particular, tornou-se o foco do pensamento sistêmico em cibernética e representa uma concepção fundamental, também nas teorias de auto-organização. O padrão, ou estudo da forma precisa ser compreendido numa configuração de relações e se constitui no caminho para compreensão dos sistemas vivos. Propriedades sistêmicas são propriedades de um padrão (Capra, 1994). O que é destruído quando um organismo vivo é dissecado é o seu padrão, os seus componentes estão preservados, mas a configuração de relações entre eles – o padrão – é destruído e o organismo morre.

 

Os conceitos de meio ambiente, metasistemas, sistemas, elementos e suas relações entre si são fatores de uma estrutura constante nas diversas teorias de auto-organização. O que é distintivo e as caracteriza (NEUSER, 1994)é o modo e a forma em que os elementos da estrutura são apontados como relacionamentos entre si, onde a processualidade adquire relevância na relação de troca entre meio ambiente, metasistema e sistema. Com relação a um conceito abrangente de auto-organização pode-se destacar o que Neuser demonstra:

 

Auto-organização, enquanto descrição, é considerada como um tipo de determinismo, que se caracteriza por autoreferencialidade e auto-semelhança e por um sistema, ao qual subjazem qualidades. (...) Existe um meio ambiente com o qual o próprio sistema não interage (sistema fechado), interage (sistema aberto) ou ele, ao mesmo em parte, é o seu próprio meio ambiente (sistema autopoiético). (...)

O conceito de auto-organização parece descrever, com sentido, processos de sistemas dinâmicos, os quais encontram uma posição de equilíbrio local e dinâmico bem longe de um equilíbrio estatístico. Nisso, o sistema deve ser considerado como um todo em seu estado. Só o sistema inteiro tem estabilidade e organização. A evolução do sistema é uma seqüência proveniente de transições de estados do sistema integral, pensadas quase estaticamente." (NEUSER, 1994, p.56,57 e 58)

 

As teorias de auto-organização apontam para a realidade concreta que deve ser interpretada e concebida como resultado de atividades de construção de nosso mundo, isto é, de nós mesmos juntos com o nosso ambiente, construção esta que se realiza pelos atos de percepção, pela experiência, pelo agir, pela vivência e pela comunicação, entendendo-se com estes, os momentos integrantes da construção ativa de nossas vidas. Dessa forma, reconhece-se a inviabilidade de uma perspectiva de investigação marcada pela posição distanciada e supostamente "não comprometida" do observador. Busca-se compreender como o ser humano consegue realizar reflexões a partir de si mesmo, tornando-se um ser auto-consciente, que se faz e se refaz a cada interação.

 

 

5.4 A Teoria Autopoiética

 

 

A teoria de auto-organização, tal como está definida por Maturana é, também, conhecida como teoria autopoiética. Com o objetivo de sintetizar os componentes mais centrais de sua teoria, pode-se partir da representação de um triângulo formado pelo ser humano no vértice da base, representando a dimensão antropológica. No vértice superior o conhecimento representa a dimensão epistemológica e a ação no outro, é a dimensão ético-política.

 

Conhecimento – dimensão epistemológica

 

 

 

Ser Humano – dimensão antropológica Ação – dimensão ético-política

 

Estes três componentes que, apesar de independentes um do outro, quando relacionados, buscam a superação da dicotomia entre teoria e práxis, tal como figura na visão cartesiana. Segundo Maturana e Varela, todas as abordagens "comportamentais" até então postuladas, nunca deixaram de ser pressuposições sobre processos operacionais que "geravam" o comportamento humano porque partiam de um enfoque tradicional e não respondiam a questões do tipo:

 

Qual é a organização do ser vivo?

Qual é a organização do sistema nervoso?

Quais são e como surgem as relações comportamentais que originam toda a cultura?

 

Estas reflexões de Maturana e Varela, contavam, inicialmente, com a análise feita por biólogos organísmicos sobre a natureza da forma biológica e dos ciberneticistas, a respeito da natureza da mente. A partir disto, puderam compreender que o ponto para o entendimento estava na "organização da vida". O sistema nervoso passa a ser visto como a organização básica de todos os seres vivos numa "organização circular" em que os componentes que especificam a organização circular, também deveriam ser produzidos e mantidos por ele. O "padrão de rede", em que a função de cada componente é ajudar a produzir e transformar outros componentes, mantém a circularidade global da rede e representa a "organização básica da vida". Outra conclusão relevante, na teoria autopoiética, refere-se a uma nova compreensão em relação à cognição. Ao apresentar o sistema nervoso como auto-organizador, mas também "autoreferente", a cognição deixa de representar somente uma realidade exterior, e vai especificá-la por meio do processo de organização circular do sistema nervoso, tal como demonstram Maturana e Varela:

 

Notemos , então, que a avaliação quanto a se há ou não conhecimento se dá sempre num contexto relacional, em que as mudanças estruturais que as perturbações desencadeiam no organismo parecem ao observador, como um efeito sobre o meio. É em relação aos efeitos esperados que o observador avalia as mudanças estruturais desencadeadas no organismo. Desse ponto de vista, toda interação de um organismo , toda conduta observada, pode ser avaliada por um observador como um ato cognitivo. Da mesma maneira o viver – a conservação ininterrupta do acoplamento estrutural como ser vivo – é conhecer no âmbito do existir. Aforisticamente, viver é conhecer (viver é ação efetiva no existir como ser vivo)." (MATURANA; VARELA, 1995, p.201)

 

Estas questões trazem à tona a dificuldade central do conhecimento humano que consiste em reconhecer sua natureza circular designada por Maturana (1995) de fenômeno de tautologia cognoscitiva. Consiste, em poucas palavras, no fato de que o universo de conhecimentos, de experiências, de percepções do ser humano não é passível de explicação a partir de uma perspectiva independente desse mesmo universo. Só é possível relacionar o conhecimento humano, suas experiências e percepções a partir dele mesmo.

 

Os fenômenos básicos da compreensão são concebidos enquanto processo recursivo no qual o agir e o conhecer, o agente e o conhecimento encontram-se mutuamente interligados num círculo inseparável. O conhecimento não é apenas um conhecer "objetivo" do meio e das coisas porque há um envolvimento do observador-pesquisador. É impossível para o observador situar-se fora de suas próprias percepções. Nesse caso, supera-se o clássico triângulo "observador-organismo-ambiente", substituindo-o por um círculo com o observador no centro. Esta concepção vem a esclarecer a posição do observador, no caso humano, em que as descrições podem ser feitas tratando as outras descrições como objetos ou elementos do domínio de interações. De acordo com o que propõem Maturana e Varela:

 

... o observar é um modo de viver o mesmo campo experiencial que se deseja explicar. O observador, o ambiente e organismo observado formam agora um só e idêntico processo operacional-experiencial-perceptivo no ser do observador. (MATURANA; VARELA, 1995, p.354)

 

O entendimento de que os sistemas vivos são sistemas cognitivos e que a vida é um processo de cognição, resultou na teoria da autopoiese, elaborada em conjunto com Francisco Varela. Auto significa "si mesmo" e se refere à autonomia dos sistemas auto-organizadores, e poiese – que compartilha da mesma raiz grega com a palavra poesia – significa "criação", "construção". Portanto, autopoiese significa "autocriação" (Capra, 1994). Maturana e Varela começaram seu ensaio sobre autopoiese caracterizando sua abordagem como "mecanicista", para distingui-la das abordagens vitalistas da natureza da vida:

 

Uma máquina autopoiética é uma máquina organizada como um sistema de processos de produção de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes que: I)geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas contínuas interações e transformações, e II) constituem à máquina como uma unidade no espaço físico (...)(MATURANA; VARELA, 1997 a, p.71)

 

Apesar desta aparente filiação com o mecanismo cartesiano, os autores esclarecem que o interesse não está vinculado às propriedades dos componentes, mas sim nas relações entre processos realizados por meio dos componentes, o que os coloca como pensadores sistêmicos. A organização autopoiética se constitui em uma configuração invariante de relacionamento, em torno da qual a seleção de suas alterações estruturais determina seu desenvolvimento fixando, assim, a história de suas interações. A observação e os próprios observadores criam uma tal interação à unidade, interação esta que é o momento constitutivo desta unidade. Afinal, a unidade é apenas tal qual se mostra ao olhar do observador.

 

 

5.4.1 O Domínio Cognitivo na Teoria Autopoiética

 

 

Uma característica definidora da epistemologia implicada na autopoiese de Maturana e Varela é de que a cognição é vista como uma representação de um mundo que existe independentemente. Apesar da origem de seus estudos estar alicerçada nos princípios da cibernética, em que o modelo de computador na cognição significava o processamento de informações, este nível de compreensão foi superado. A formulação específica, baseada na idéia geral de um mundo pré-determinado, dissociado do observador foi revisto e as representações mentais de suas características objetivas são redimensionadas, no âmbito do sistema cognitivo. Portanto, a cognição não é a representação de um mundo preexistente, mas a criação de um mundo. O que é criado por um determinado organismo no processo de viver não é o mundo, mas um mundo, que é sempre dependente da estrutura do organismo. Uma vez que os organismos, no âmbito de uma espécie têm mais ou menos a mesma estrutura, eles criam mundos semelhantes. Além disso, nós seres humanos, partilhamos do mundo abstrato de linguagem e de pensamento, por meio do qual criamos juntos o "nosso mundo". A este respeito cabe destacar o que afirma Capra:

 

Maturana e Varela não sustentam que há um vazio lá fora, a partir do qual criamos matéria. Há um mundo material, mas ele não tem nenhuma característica predeterminada. Os autores da teoria de Santiago não afirmam que’nada existe’ (nothing exists) que sejam independentes do processo de cognição. Não há estruturas que existem objetivamente; não há um território pré-dado do qual podemos fazer um mapa - a própria construção do mapa cria as características do território. (CAPRA, 1994, p.213)

 

Portanto, a cognição passa a ser parte integrante da maneira como o organismo vivo interage com seu meio ambiente. Este organismo não reage aos estímulos ambientais por meio de uma cadeia linear de causa e efeito, mas responde com mudanças estruturais em sua rede autopoiética não-linear, organizacionalmente fechada. A interação cognitiva do organismo com seu meio ambiente é interação inteligente. A inteligência se manifesta na riqueza e flexibilidade do acoplamento estrutural de um organismo. A gama de interações que um sistema pode ter com seu meio ambiente define seu domínio cognitivo.

 

A cognição passa a ser entendida por Maturana e Varela como atividade envolvida na autogeração e autoperpetuação de redes autopoiéticas, isto é, a cognição é próprio processo da vida e a vida, como processo, é um processo de cognição. O processo da vida consiste em todas as atividades envolvidas na contínua interpretação do padrão de organização autopoiética do sistema. Uma vez que a cognição é, tradicionalmente, definida como processo de conhecer, torna-se necessário descrevê-la pelas interações de um organismo com seu meio ambiente. Nessa visão renovada, a cognição passa a envolver todo o processo de vida incluindo a percepção, a emoção e o comportamento.

 

 

5.4.2 O Surgimento da Linguagem

 

 

Ao contrário do que é proposto nas tradicionais teorias racionalistas, não é o homem que faz a história construindo, simultaneamente, a linguagem; ao contrário, desde sempre ele está inserido nela buscando dar sentido à sua experiência. O uso da linguagem é de natureza operacional, isto significa dizer, que estará sempre condicionado a um meio que gera interações e que é gerado, a partir destas. A linguagem pressupõe o resultado evolutivo nas interações recursivas de organismos que possuem sistemas nervosos estruturalmente plásticos e fechados. No "caso humano" o operar na linguagem envolve descrições das descrições que fazemos, conservando nossa adaptação no domínio de significados resultantes que faz com que existamos num mundo sempre aberto de interações lingüísticas recorrentes. A linguagem é destacada por Maturana e Varela, da seguinte maneira:

 

... queremos identificar a característica chave da linguagem, que modifica de modo tão radical os domínios comportamentais humanos possibilitando novos fenômenos como a reflexão e a consciência. Tal característica é que a linguagem permite a quem opera nela descrever-se a si mesmo e às suas circunstâncias. (...) O fundamental no caso humano é que, para o observador, as descrições podem ser feitas tratando as outras descrições como objetos ou elementos do domínio de interações. Ou seja, o próprio domínio lingüístico passa a fazer parte do meio de interações possíveis. Somente quando se produz tal reflexão lingüística é que existe linguagem, surge o observador, e os organismos participantes passam a operar num domínio semântico." (MATURANA; VARELA, 1995, p.233)

 

O domínio lingüístico passa a fazer parte do meio de interações possíveis somente quando se produz reflexão lingüística e os organismos participantes passam a operar num domínio semântico. A linguagem como processo não tem lugar no corpo (no sistema nervoso) de seus participantes, mas no espaço de coordenações consensuais de conduta que se constitui no fluir nos seus encontros, inclusive, corporais recorrentes. Por isso, que nenhuma conduta, gesto ou palavra constitui por si só um elemento da linguagem, mas é parte dela, somente na medida em que pertence a um fluir recursivo de coordenações consensuais de conduta. A este respeito aponta Maturana:

 

Quando você tem linguagem, o que você tem é a possibilidade de um comportamento que um observador poderá descrever como recursões em um domínio lingüístico consensual. Essas recursões podem se dar por causa de uma peculiaridade muito interessante do sistema nervoso. O sistema nervoso é um sistema fechado, uma rede fechada de componentes que interagem uns com os outros, e nos quais a dinâmica de estados é uma contínua mudança de relações de atividade que geram relações de atividade na mesma rede. (...) a linguagem não está no cérebro ou no sistema nervoso, mas sim no domínio das coerências mútuas entre os organismos . Quando o observador observa que isso acontece, e que as distinções realizadas aqui podem ser recursivas, ou seja, podem ser distinções de distinções nesse domínio, então nós temos uma linguagem." (MATURANA, 1997b, p.66)

 

Todos os seres vivos apresentam o seu desenvolvimento individual restrito pela sua própria organização, que é o seu corpo, estando inseridos pelas transformações do meio dos quais fazem parte. Cada ser vivo, mantém a sua identidade em cada interação e o operar do sistema nervoso é que vai determinar a diferença de um para outro ser vivo. Deste ponto inicial, surgem caminhos para o estabelecimento da consciência e autoconsciência, fenômenos do domínio de relações de organismos que operam na linguagem, mas são vividas como experiências no fluxo de coordenações consensuais. A consciência não está localizada no sistema nervoso ou no corpo em geral e nem pode estar ligada a nenhum aspecto estrutural do sistema nervoso. Esta é vivenciada como uma experiência na autoconsciência, apenas enquanto existe operacionalidade. Apesar da dimensão que esses dois fenômenos possam assumir, isoladamente, não constituem característica fundamental do "ser humano". Nesse sentido, o viver na linguagem, torna-se o fator preponderante porque é, assim, que nos tornamos autoconscientes e podemos ter uma consciência do viver.

 

Ao colocar o existir do "ser humano" a partir do entrecruzamento de muitas conversações de domínios operacionais que configuram realidades diferentes é possível recuperar o emocional como um âmbito fundamental do ser humano. Na história evolutiva, o humano configura-se com o conversar, ao surgir a linguagem como um operar recursivo nas coordenações condutuais consensuais que se dão no âmbito de um modo particular de viver, tal como afirma Maturana:

 

O reconhecer que o humano se realiza no conversar como entrecruzamento da linguagem e o emocionar que surge com a linguagem, nos dá a possibilidade de reintegrar-nos nestas duas dimensões com uma compreensão mais total dos processos que nos constituem em nosso ser cotidiano, assim como a possibilidade de respeitar em sua legitimidade estes dois aspectos de nosso ser. (MATURANA, 1998, p. 100)

 

Diante do que está exposto, é importante para a compreensão do humano que o destaque para a participação das emoções como fundamento de qualquer sistema racional no fluir do conversar conduz ao verdadeiro valor da razão na compreensão do humano. Da mesma forma, foi a centralidade da cooperação e da confiança (biologia do amor) da linhagem do "ser humano" que levou ao estabelecimento da linguagem como característica central do modo de vida que nos é peculiar.

 

Portanto, a partir da existência da linguagem e da estruturação da consciência é que vai se dar a constituição do humano. Tal característica permite a quem opera na linguagem descrever-se a si mesmo e as suas circunstâncias e não há limites para o que podemos descrever, imaginar e relacionar. Cada interação será o resultado das transformações do sujeito com o meio, na qual a linguagem gera a interação e também é gerada nela, criando um processo recursivo o qual permeia de modo absoluto, toda nossa ontogenia como sujeitos, desde o caminhar e a postura até nossas ações no campo político.

 

 

5.5 A Rede de Interações

 

 

A nossa história é a história das nossas interações. Para cada ser vivo esta história resulta num caminho específico de mudanças estruturais. A ontogenia de todo ser vivo consiste em sua contínua transformação estrutural e é um processo que ocorre sem interromper a identidade, nem o acoplamento estrutural do organismo ao meio. Ao seguir um curso particular selecionado pela seqüência de mudanças estruturais desencadeadas por sua história de interações, a natureza cognoscitiva do ser humano é compreendida como o amplo espectro no qual o ser humano encontra-se, com a sua identidade. Em qualquer domínio de convivência que estabelecemos com outro organismo, este observará em nós um comportamento cognitivo, ou seja, uma conduta adequada. O fenômeno da cognição é necessariamente relativo ao domínio no qual se observam as coerências estruturais que são resultantes das histórias de interações dos organismos. Esta identidade estabelecida entre a cognição e o viver é determinada pelo organismo que especifica o que ele admite como uma interação. E, quando quer que tenhamos organismos que, através de uma história de interações continuam interagindo um com o outro, temos um domínio lingüístico.

 

Todos os seres vivos são sistemas determinados estruturalmente e tudo o que se passa com eles a cada instante resulta de sua dinâmica estrutural e é determinado por ela, de maneira que objetos externos podem somente desencadear mudanças estruturais determinadas pela própria estrutura dos seres vivos. E o viver é uma história na qual o curso das mudanças estruturais que se vive é contingente à história de interações pelo encontro com os objetos. Essa história de mudança estrutural é contigente à seqüência de interações, em que o ser vivo e sua circunstância mudam juntos. Isto é importante: o ser vivo e sua circunstância mudam juntos.

 

Para que haja uma história de interações recorrentes torna-se necessária uma emoção que constitua estas condutas. Se esta emoção não se dá, não há história de interações recorrentes, mas somente encontros casuais e separações. Existem duas emoções "pré-verbais" que tornam isto possível: a rejeição e o amor. A rejeição constitui o espaço de condutas que negam o outro como legítimo outro na convivência e o amor constitui o espaço de condutas que aceitam o outro como um legítimo outro na convivência. A rejeição constitui um espaço de interações recorrentes que culmina com a separação. O amor, por sua vez, constitui um espaço de interações recorrentes que se amplia e pode estabilizar-se como tal. O amor assume um papel destacado na rede de interações porque é um espaço de convivência onde podem dar-se as coordenações de conduta que constituem a linguagem, que fundam o humano. A este respeito destaca-se Maturana:

 

Às vezes acreditamos que um discurso por ser abstrato, não nos atinge mas não é assim porque, como já disse, o falar tem a ver constitutivamente com o agir. Além disso, nessa história de interações recorrentes e de coordenações de ações em coordenação emocional, existem outras emoções além do amor. Algumas o negam, outras não, outras se entrecruzam com ele. O emocionar da convivência no discurso, na linguagem, não pode nem deve ser negado, porque é com ele que se dá o viver humano. É no emocionar que surgem tanto o amigo como o inimigo, não na razão ou no racional. (MATURANA, 1999, p.77)

 

Ao conceber a história de interações como resultante de interações particulares propõe-se a valorização dos processos singulares que se dão com todos os alunos, e, em especial, com aqueles em situação de desvantagem, na medida que lhes é garantido o espaço para a livre expressão. Um dos caminhos que se mostram mais significativos é aquele em que o linguajar e o conversar se manifestam. As interações na linguagem têm lugar em uma dança de interações estruturais recíprocas, em que todos os envolvidos são afetados mutuamente em suas corporalidades, ao operarem como seres humanos em seu linguajar. O falar e o escutar têm lugar simultaneamente em todos os participantes e cada um deles é um falante e um ouvinte para os demais, como para si mesmo. Dessa forma, mantêm-se os fenômenos básicos da compreensão no processo recursivo, mutuamente interligados num círculo inseparável.

 

 

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6 A Pesquisa

 

 

Nunca quis o verso celebrante,

no mundo não vejo o que se cante:

 

quis verso que até nos tropeções

mostrasse o absurdo e seus mil tons.

(João Cabral de Melo Neto, 1988, p.112)

 

 

6.1 Retomando o Problema e as Questões de Pesquisa

 

 

Ao referir os aspectos de minha atuação como professora em turmas de alfabetização na escola por ciclos de formação, apresentava-se como fator preponderante as questões relacionadas à aprendizagem dos alunos em situação de desvantagem. A partir da delimitação do objeto de estudo, o problema de pesquisa assumiu a seguinte formulação:

 

...investigação a respeito dos avanços na aprendizagem de alunos em situação de desvantagem, que freqüentam a escola pública municipal de ciclos de formação e as conexões com um esquema curricular denominado complexo temático que, ao propor a interdisciplinaridade como princípio básico, redimensiona o papel da escola e do ensino.

 

A partir da definição do problema, tornou-se necessário delimitar questões que permitissem desvelar as implicações teóricas subjacentes, fornecendo elementos enriquecedores para a análise posterior dos aspectos centrais que permitissem levar a conclusões argumentativas consistentes. Durante a pesquisa, certas questões adquiriram maior destaque pela sua capacidade de congregar as principais inquietações surgidas na reflexão entre os aspectos teóricos apresentados na confrontação com os dados coletados no ambiente de sala de aula, delimitado como ambiente da pesquisa. São as seguintes:

 

O complexo temático tem favorecido o estabelecimento de relações entre os conhecimentos cotidianos com as necessidades e os interesses do conjunto de alunos considerados em situação de desvantagem?

Existe uma rede de interações que se efetiva no cotidiano escolar, favorecendo as trocas comunicativas entre os alunos em situação de desvantagem, na relação com os demais integrantes do contexto escolar em que estão inseridos?

Se considerada sua existência, esta rede tem sido um elemento propiciador de novas relações para os alunos em situação de desvantagem?

Existe um espaço contratual entre estes professores e os alunos em situação de desvantagem capaz de encaminhar os esforços pedagógicos na direção de melhores oportunidades de aprendizagem para esses alunos?

Como o saber e o diálogo se explicitam entre educador /educando na relação pedagógica na ação deste sujeito para a construção do conhecimento em processos coletivos e cooperativos?

 

Quando da seleção das questões para pesquisa, despontou como uma preocupação básica delinear o espaço de ação possível para análise das questões em que as aprendizagens evidenciadas pelos alunos em situação de desvantagem apareciam como "problemas" para os professores no âmbito da escola. Havia muitas queixas sobre determinados alunos que necessitavam de demasiado tempo para dirigirem sua atenção aos temas propostos para estudo em sala de aula. Além disto, a capacidade de compreender, generalizar e inferir repercutia no restrito vocabulário utilizado, nas produções escritas de pouca expressão e na dificuldade em concluírem a maioria das tarefas iniciadas. As constatações emitidas pelos professores poderiam ser consideradas somente como análises superficiais sobre a forma de os alunos agirem, porque poderiam estar vinculadas às precárias condições de vida a que estão submetidos, ou mesmo, a características inerentes ao desenvolvimento biológico, psíquico e social. Entretanto, tais julgamentos permeavam o cotidiano das relações de sala de aula entre professores e alunos e influíam na maneira destes relacionaram-se com o mundo ao seu redor.

 

Por isso, justifica-se a importância de aprofundar o estudo acerca das possibilidades de sucesso escolar para alunos em desvantagem, ao levar em consideração as questões do contexto escolar dos sujeitos envolvidos na relação com seus pares, com professores e demais participantes do meio escolar em que estão inseridos.

 

Com o objetivo de compreender o processo acima descrito e buscar resposta para as questões da presente investigação foram selecionados cinco sujeitos de uma turma de alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo, localizada no bairro Vila Nova, zona sul de Porto Alegre. Estes alunos compunham uma Turma de Progressão que foi promovida à categoria de ano-ciclo no decorrer do ano letivo e apresentavam características comuns que os colocavam em situação de desvantagem em relação aos demais alunos.

 

 

6.2 A Pesquisa Qualitativa

 

 

Ao refletir sobre o caráter do fenômeno apresentado como objeto de estudo, a chamada "pesquisa qualitativa" mostra-se com melhores condições para permitir a continuidade da análise. Existem determinadas características definidoras de um processo de investigação qualitativa que permitem esclarecer aspectos relevantes com relação ao estudo desenvolvido. Na investigação qualitativa a fonte direta dos dados é o ambiente natural e o investigador é o instrumento principal (Bogdan; Biklen, 1994). Os investigadores despendem boa parte do tempo disponível para freqüentar o local de estudo porque se preocupam com o contexto; entendem que as ações podem ser melhor compreendidas quando são observadas no seu ambiente habitual de ocorrência. Os locais têm de ser entendidos no contexto da história das instituições a que pertencem. Os dados, recolhidos nas palavras ou imagens, apresentam-se em forma predominantemente descritiva. Os resultados escritos da investigação contêm citações feitas com base nos dados para ilustrar e substanciar a apresentação. Os dados são analisados em toda sua riqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma em que estes foram registrados ou transcritos. A abordagem da investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a idéia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permite estabelecer uma compreensão mais esclarecedora de nosso objeto de estudo. A ênfase qualitativa no processo é uma característica que potencializa o papel dos sujeitos envolvidos, destacando o papel das atividades, dos procedimentos e das interações diárias nos resultados a serem obtidos até o final da pesquisa. A análise dos dados recolhidos começa a assumir um delineamento mais definido a partir do conhecimento e contato com os sujeitos envolvidos. Assim, assumirão uma importância mais destacada de acordo com o rumo que a investigação assumirá, pois não se presume que se sabe o suficiente para reconhecer as questões importantes, antes de efetuá-la. Os investigadores que fazem uso deste tipo de abordagem estão interessados no modo como diferentes sujeitos dão sentido as suas vidas. Por isso, estão continuamente a questionar os sujeitos da investigação com o objetivo de perceber aquilo que eles experimentam, o modo como eles interpretam suas experiências e o modo como eles próprios estruturam o mundo social em que vivem. A respeito das características da pesquisa qualitativa pode-se destacar o que Triviños aponta:

 

A pesquisa qualitativa com apoio teórico na fenomenologia é essencialmente descritiva. E como as descrições dos fenômenos estão impregnadas dos significados que o ambiente lhes outorga, e como aquelas são produto de uma visão subjetiva, rejeita toda expressão quantitativa, numérica, toda medida. Desta maneira, a interpretação dos resultados surge como a totalidade de uma especulação que tem como base a percepção de um fenômeno num contexto. Por isso, não é vazia, mas coerente, lógica e consistente. Assim, os resultados são expressos, por exemplo, em retratos (ou descrições), em narrativas, ilustradas com declarações das pessoas para dar o fundamento concreto necessário, com fotografias etc., acompanhados de documentos pessoais, fragmentos de entrevistas etc. (TRIVIÑOS, 1987, p.128)

 

Durante a realização da presente pesquisa, atuei como professora da turma de alunos e, contemporaneamente, no papel de pesquisadora. O engajamento no trabalho pedagógico cotidiano permitiu que considerasse continuamente o problema de pesquisa, participando da totalidade de eventos ocorridos em sala de aula na tentativa de "captar" a perspectiva dos participantes. O enfrentamento das questões relacionadas ao meu fazer docente ocupou muito da minha energia e atenção, mas, ao mesmo tempo, proporcionou uma coleta de dados diversificados, atingindo um amplo espectro de situações focalizadas, decorrentes do contato diário e sistemático.

 

A atuação como pesquisadora exigiu disciplinamento metodológico para focalizar o fenômeno estudado e como este se manifestava nas diversas atividades e procedimentos de sala de aula. A configuração de investigação ora descrita permite que se identifique as ações empreendidas com a "pesquisa participante". Nesse sentido, a pesquisa viabilizou a coleta de dados sistemática em uma trajetória rica de elementos associados que levaram à configuração do objeto de estudo de maneira mais abrangente e aprofundada. O diário de campo utilizado constitui-se em registro permanente das observações realizadas procurando estabelecer pontos de contato entre os fenômenos descritos e os referenciais teóricos mais pertinentes.

 

 

 

 

6.3 O Estudo de Caso

 

 

Dentre as várias formas que pode assumir uma pesquisa qualitativa, o desenvolvimento do estudo de caso constituiu-se numa expressão importante, demonstrando, por suas características, condições de analisar o fenômeno em questão. O caso é uma unidade dentro de um sistema mais amplo (Lüdke; André, 1986). A sua característica distintiva é a ênfase na singularidade e o interesse, portanto, incide naquilo que este tem de único, de particular. O destaque de dimensões específicas e singulares teve que – no estudo em questão – estar articulado com o conjunto de pressupostos do projeto político-pedagógico que organiza o contexto da escola. Assim, podemos identificar o "caso" como a classe investigada, cuja evolução é descrita ao longo do presente estudo. A metodologia do estudo de caso apontava possibilidades para o desenvolvimento da pesquisa pelo tipo de análise que propus relacionada ao estudo de uma classe de alunos.

 

Na análise da pesquisa, procurou-se colocar em destaque as diferentes interações presentes na situação social dos alunos, visando reconhecer as articulações existentes entre "projeto coletivo" e "projeto de aprendizagem" de cada sujeito. Dessa maneira, o estudo de caso buscou evidenciar a interpretação em contexto, procurando representar os diferentes e, às vezes, conflitantes pontos de vista presentes na situação apresentada.

 

O foco principal de análise convergiu para as relações entre as aprendizagens dos alunos apresentados como sujeitos da pesquisa e as possibilidades oferecidas pela proposta de ação que privilegiava o complexo temático, como elemento articulador da ação pedagógica.

 

O desenvolvimento do estudo de caso deu-se em duas fases, uma primeira mais exploratória em termos de coleta de dados e a segunda consistindo na análise e interpretação sistemática destes dados na relação com os referenciais teóricos priorizados.

 

Desde o início da pesquisa, pretendia-se investigar os processos de aprendizagem de alunos com necessidades educativas especiais, na perspectiva de uma proposta interdisciplinar, associada aos ciclos de formação da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Nesta fase, definiu-se que a pesquisa seria realizada na própria turma em que atuava como professora referência.

 

É importante destacar que, ainda durante a fase exploratória, foi realizada uma entrevista com um informante chave. Esta entrevista constituiu-se em elemento de análise e entendimento do fenômeno apresentado quanto à evolução do projeto político-pedagógico proposto para toda a Rede Municipal de Ensino. Através deste depoimento, foram coletadas valiosas informações a respeito da organização das escolas por ciclos de formação, da história da implantação deste tipo de organização curricular e do complexo temático na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.

 

 

6.4 O Cenário de Investigação

 

 

O cenário da investigação foi uma turma de alunos que, ao início do ano letivo era denominada de turma de progressão. No contexto das escolas por ciclos de formação em Porto Alegre esta foi a alternativa criada para garantir a aprendizagem dos alunos que se encontravam temporariamente impedidos de acompanhar os seus pares de idade, por apresentarem defasagem entre idade e escolaridade, bem como para aqueles provenientes de outras escolas e que precisavam vivenciar um processo de adaptação ao contexto escolar com a presente organização curricular.

 

A turma de alunos da presente investigação passou por um processo inovador e singular de transformações na lógica de organização dos ciclos de formação que reorganizou a constituição do grupo, bem como a organização do ensino. Diante da relevância que esse processo assumiu no decorrer do estudo, tais aspectos serão detalhadamente apresentados e analisados nos capítulos subseqüentes.

 

 

6.5 A Coleta de Dados

 

 

Houve o acompanhamento sistemático da turma de alunos alvo da investigação, durante um ano escolar. Utilizou-se a observação participante, o registro de diário de campo e, posteriormente, entrevistas com os alunos que permitissem um momento de reflexão e expressão sobre suas trajetórias. A situação de entrevista buscou dar ênfase a uma interação contínua e à influência recíproca entre quem perguntava e quem respondia. As entrevistas com os alunos foram privilegiadas pela oportunidade de se criar a interação, favorecendo uma "atmosfera" de influência recíproca entre quem perguntava e quem respondia. Além disto, as entrevistas foram utilizadas pela possibilidade de os alunos falarem sobre eles mesmos, expondo expectativas, assim como a percepção que tinham a respeito de suas aprendizagens.

 

A observação participante permitiu o acesso ao fenômeno selecionado pela possibilidade de fazer um "mergulho" no cotidiano escolar. Nas inúmeras situações que se sucederam, um possível estranhamento entre o pesquisador e o objeto de pesquisa foi desfeito pela regularidade dos encontros cotidianos que estabeleceram a devida distância entre o que era aparentemente visível e suas possíveis implicações com o objeto de pesquisa, enquanto traçaram o fio condutor para a melhor caracterização do fenômeno. Os focos da observação estiveram relacionados aos propósitos definidos na delimitação do problema, bem como nas questões de pesquisa, envolvendo, principalmente, a descrição dos sujeitos, das atividades, dos eventos especiais acontecidos na sala de aula e na escola como um todo, relacionados ao complexo temático e à proposta dos ciclos de formação.

Outro aspecto que recebeu destaque foi a reconstrução de diálogos entre os alunos e a pesquisadora, que compuseram as anotações no diário de campo. As anotações de campo (Triviños, 1987) podem ser entendidas como todo o processo de coleta e análise de informações que compreende as descrições de fenômenos sociais e físicos, explicações levantadas sobre as mesmas e a compreensão da totalidade da situação em estudo. Com relação à pesquisa, foram importantes instrumentos de coleta de dados, o registro das reuniões pedagógicas realizadas no decorrer do ano letivo, assim como documentos referentes aos processos internos de discussão e deliberação da Escola Monte Cristo, tais como atas de reunião e documentos de circulação interna e, também, aqueles publicados pela Secretaria Municipal de Educação a respeito da Escola Monte Cristo, dos ciclos de formação e da proposta político-pedagógica "Escola Cidadã".

 

Os dados coletados na realização da pesquisa foram utilizados a partir de sua relevância enquanto momentos significativos para a reflexão e análise, conforme apontam Bogdan e Biklen:

 

Os dados são simultaneamente as provas e as pistas. Coligidos simultaneamente, servem como factos inegáveis que protegem a escrita que possa ser feita de uma especulação não fundamentada. Os dados ligam-nos ao mundo empírico e, quando sistemática e rigorosamente recolhidos, ligam a investigação qualitativa a outras formas de ciência. Os dados incluem os elementos necessários parar pensar de forma adequada e profunda acerca dos aspectos da vida que pretendemos explorar. (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p.90)

 

A segunda fase relacionada à análise de dados envolveu, basicamente, a retomada de todo o material obtido durante a pesquisa. A tarefa de análise implicou na organização deste material, dividindo em partes, relacionando estas partes e procurando identificar tendências e padrões relevantes. Nesse momento, chamou atenção a trajetória percorrida por certos alunos que manifestaram avanços significativos em suas aprendizagens, na forma de se relacionar com o grupo, com os professores e com o ambiente escolar. Este foi um indicativo importante que levou a selecionar os alunos que poderiam contribuir tanto na delimitação do foco de estudo, como no aprofundamento dos referenciais teóricos. A análise dos dados procurou manter a "objetividade", apresentando informações fidedignas, resguardando a identidade dos sujeitos envolvidos, indo além da descrição dos dados coletados, estabelecendo conexões e relações que possibilitaram a proposição de novas interpretações.

 

 

6.6 Os Sujeitos da Pesquisa

 

 

Para compor o universo dos sujeitos da pesquisa foram selecionados 05 (cinco) alunos pertencentes à turma, mais recentemente denominada de B16. Os alunos freqüentavam a Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo, pertencente à Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.

 

A turma era constituída por alunos que já haviam freqüentado turma de progressão em anos anteriores ou advindos de turmas de 3º ano do 1ºciclo e que apresentavam defasagem de aprendizagem em relação ao seu nível de desenvolvimento. Os alunos encontravam-se em processo de alfabetização, apresentando diferentes níveis de compreensão da língua escrita e falada. Nas demais áreas do conhecimento, trabalhadas no currículo escolar, apresentavam distintos campos de compreensão e entendimento na aplicação dos temas desenvolvidos nos estudos de sala de aula.

 

 

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7. O Complexo Temático "Convivência" da Escola Monte Cristo

 

 

A verdade é que, depois de séculos de modernidade, o vazio do futuro não pode ser preenchido nem pelo passado nem pelo presente. O vazio do futuro é tão-só um futuro vazio.

Penso, pois, que, perante isso, só há uma saída: reinventar o futuro, abrir um novo horizonte de possibilidades, cartografado por alternativas radicais às que deixaram de ser.

(Boaventura de Sousa Santos, 1997, p.322)

 

 

7.1 Apresentação do complexo temático "Convivência"

 

 

Torna-se necessário o destaque de um complexo temático desenvolvido recentemente na escola que é o contexto da presente investigação.

 

Com relação ao complexo temático e suas implicações para a efetivação das aprendizagens dos alunos, há certas características na condução do processo ocorrido durante o ano letivo de 2000. O destaque às etapas desse processo deve-se à necessidade de apresentação de um "campo" de investigação, além da ênfase em desdobramentos diferenciados que caracterizaram a singularidade das opções da escola.

 

O ano letivo principiou com uma reunião de estudos que tinha como pauta principal encaminhar o rumo do complexo temático, elaborado em 1999. A equipe pedagógica, no início da reunião indagou ao grupo de professores:

 

– Será este o momento para iniciarmos a elaboração de um novo complexo ou devemos retomar o complexo de 1999 ou, ainda, realizar um novo trabalho de pesquisa sócio-antropológica na comunidade, tendo em vista as alterações provocadas pelo novo assentamento na Vila Monte Cristo, no entorno da Escola?

 

A reunião foi permeada por defesas acerca destas possibilidades e, por fim, os presentes deliberaram, através de votação simples, que seria oportuno continuar as atividades pedagógicas com o mesmo complexo por aproximadamente 30 (trinta) dias e, após este período, seria iniciado o processo de elaboração do novo complexo para o ano letivo corrente.

 

Dando continuidade aos trabalhos, o grupo envolveu-se no levantamento de temas para serem trabalhados durante o mês de março, tendo por base a teia temática do Complexo Temático de 1999. Foram elencados os seguintes pontos para estudo e aprofundamento em todos os ciclos:

 

conceito de identidade;

as diferenças culturais: relação entre os moradores da cidade e os do campo, a origem dos imigrantes e os preconceitos advindos desta situação social;

encontro de culturas no Brasil (samba, carnaval, festas religiosas).

 

Na seqüência da discussão, foram levantadas idéias que se encaminhassem na direção do núcleo central do próximo complexo temático, mesmo sem a realização de nova pesquisa antropológica. O grupo de professores concluiu que esta não seria necessária, devido a grande quantidade de dados obtidos, no ano anterior, sobre a comunidade. A equipe diretiva pronunciou-se favorável à elaboração criteriosa, por parte dos professores, do complexo temático levando em consideração a análise de todas as etapas de elaboração do complexo temático.

 

Outro elemento que ampliava as fontes de informações era o fato de que os professores tiveram contato com dados de pesquisa sobre o perfil sócioeconômico das famílias do novo assentamento, realizados pelos assessores da Secretaria da Educação. Além disto, os dados tabulados do documento de pesquisa da escola "Ver pelo Olhar da Família" do 1º trimestre de 1999 foram apresentados e discutidos pelo coletivo de educadores. De posse de todas estas informações, os professores presentes levantaram os seguintes temas que tornaram-se indicativos para o novo complexo:

 

participação

convivência

trabalhar com o diferente

receptividade

relações

inclusão

formação de guetos (o "movimento dos sem"- sem terra, sem teto, sem emprego, etc.)

 

Após discussão com todos os educadores, houve concordância quanto às deliberações gerais. Uma destas referia-se à ampliação do período para realização do atual complexo para até 45 (quarenta e cinco dias). Diante destas deliberações, acatadas por ampla maioria, as atividades pedagógicas tiveram prosseguimento até meados de abril, quando houve uma reunião de Turno de Formação para dar continuidade à elaboração do novo complexo temático. Nesta oportunidade, a coordenação buscou retomar as duas primeiras etapas do decálogo para elaboração do complexo temático para situar os docentes quanto ao processo de elaboração. Após algumas sugestões de encaminhamento, ficou definido que a dinâmica seria realizada no grande grupo para levantamento dos temas que iriam compor o núcleo do complexo e os seus campos conceituais. Desta fase surgiram as seguintes deliberações:

 

Foco principal do complexo temático: (Con)vivência

Idéias secundárias:

500 anos de Brasil;

aumento no número de alunos na Escola Monte Cristo;

funcionamento do novo prédio;

a Campanha pela Paz;

a violência.

 

Após este momento, os professores se organizaram em quatro grupos, de acordo com as áreas do conhecimento trabalhadas no currículo escolar e redigiram um princípio para cada uma destas. A reunião seguinte serviu para o levantamento dos campos conceituais. E outros dois encontros serviram para a elaboração do Plano Metodológico que diferentemente de anos anteriores, teve o seu tempo de duração estipulado para noventa dias.

 

Nas etapas iniciais de efetivação do decálogo, em que realizou-se a investigação de interesses do coletivo (etapa 1) com vistas à definição dos temas no coletivo de professores (etapa 2) houve uma intensa discussão entre os professores. Surgiram questões, como as seguintes:

 

"- Acredito que seria importante "ligar" o complexo temático a questões mais atuais como a campanha pela paz que iniciamos no ano passado e, também, alertando sobre questões ligadas à violência. Os nossos alunos falam muito sobre isto e estão preocupados, inclusive, com os novos vizinhos porque poderão surgir brigas entre grupos rivais. Esta mistura de "vilas", certamente, não dará certo!

 

Estamos comemorando, se podemos dizer assim, os 500 anos de Brasil e este é um tema do qual não podemos fugir, já que está na mídia o tempo todo!

 

Precisamos trabalhar com a idéia de ampliação da escola, estamos com mais alunos, que não conhecem a escola e, também, não nos conhecem. É importante organizar os espaços até para que possam cuidar melhor!

 

A Escola sempre esteve voltada para a participação da comunidade em todas as atividades e acho que isto deve continuar, pois só assim conseguiremos garantir a continuidade de um processo educativo que congregue a todos. Acho que esta idéia de participação precisa continuar tendo um destaque grande no complexo!"

 

A partir de questões deste tipo, o grupo de professores buscava atingir pontos importantes na elaboração do complexo que compatibilizassem as aspirações do grupo de professores com questões mais abrangentes. Na pesquisa de campo foram coletados dados e, também, nos inúmeros contatos mantidos entre os professores e a comunidade em geral, por ocasião das matrículas, na entrada e saída dos alunos às aulas ou mesmo em entrevistas que certos professores realizaram nos primeiros dias de aula.

 

Em outra reunião pedagógica, o coletivo de professores avançava em suas discussões, e despontava o tema "convivência" como o mais representativo em direção à elaboração do complexo temático, pois a escola recebera um grande número de alunos novos, advindos de outras comunidades, em virtude do assentamento de casas e apartamentos construídos no entorno da escola o que causou modificações no contexto dos alunos atendidos e suas famílias. A intenção da equipe docente era a de conhecer melhor estas famílias, procurando desvelar suas expectativas em relação ao novo domicílio e buscando a "integração" dos mesmos na escola. Assim, percebeu-se que o complexo temático ficou configurado a partir destas proposições em que os conceitos de "autonomia e cultura" circundavam o tema central "convivência", estando interrelacionados pelos campos conceituais: comunicação, identidade, vida, tempo/espaço e relações. Os campos conceituais procuravam oferecer "pistas" que delimitavam o alcance do campo conceitual. Nas reuniões pedagógicas, em que estes tópicos foram determinados, os professores externaram a necessidade de atingirmos um grau mais elevado de "organização nas relações e no uso dos espaços da escola". Portanto, os campos conceituais selecionados explicitavam a preocupação de garantir, principalmente, nas relações cotidianas as oportunidades capazes de enriquecer a convivência entre todos os alunos.

 

Quando da elaboração dos princípios por área do conhecimento (etapa 3) (vide anexo nº.2), o grupo de professores, da Área das Ciências Históricas, avançava na direção acima descrita e formulou o seguinte:

 

Desvelar elementos de origem dos diferentes grupos relacionados a sua formação: miscigenação das raças, influência do meio rural e urbano na formação da comunidade escolar, estabelecendo interações com o contexto do mundo globalizado.

O grupo de professores, desta área curricular, ao expressar de forma escrita o resultado de suas discussões, procurava garantir que houvesse um espaço privilegiado para "ouvir" o aluno e desenvolver temas de estudo que, ao mesmo tempo que partissem de sua realidade, pudessem estabelecer conexões com uma realidade maior de mundo constituído por diferentes culturas, classes sociais e modos de vida. Havia a intenção de mostrar aos alunos da escola que a realidade de cada um estava ligada a um todo maior que buscava garantir a todos uma identidade comum de "ser humano". Na abordagem sistêmica, Maturana explicita o que significa esta afirmação:

 

O humano é vivido no conversar, no entrelaçamento do linguajar e do emocionar que é o conversar. Além disso, o humano se vive em redes de conversações que constituem culturas, e também se vive nos modos de vida que as culturas constituem como dimensões relacionais que descrevemos como dimensões psíquicas, espirituais ou mentais. (...) Como seres humanos somos o que somos no conversar, mas na reflexão podemos mudar nosso conversar e nosso ser. Essa é nossa liberdade, e nossa liberdade pertence ao nosso ser psíquico e espiritual. (MATURANA, 1997b, p.121)

 

 

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8. A Turma de Alunos no Contexto da Pesquisa

 

Aqui fiam as coisas.

O relógio

na nuca do silêncio.

Dois chinelos

confusos no tapete.

O corpo que habitei

junto ao sossego.

Suas ancas de tempo.

 

Aqui fiam as noites

e elas tecem

a humana residência

ou resistência.

 

Mas nós fiamos tudo

o que nos fiam

e tudo o que nos tiram.

 

Onde o amor

Só de criar, nos cria."

(Carlos Nejar, 1977, p.36)

 

 

 

 

8.1 A Turma BP3

 

 

A denominação "Turma BP3" significa, no contexto da Escola Monte Cristo, uma turma de 2 º Ciclo, pois todas aquelas pertencentes ao 2º Ciclo, recebem a letra "B" como denominação. A letra "P" por sua vez, identifica-a como uma turma de progressão. O número "3" indica que era a terceira turma, antecedida por outras duas que existiam na escola, nas mesmas condições. A Turma BP3 era constituída por 19 alunos. Destes, 5 vieram de turmas do 3º ano do 1º ciclo. Os demais, fizeram parte em 1999. de turmas de ano-ciclo regulares, embora já apresentassem dificuldades para a aprendizagem, segundo avaliação de seus professores. Eram 7 alunos que compunham a Turma A35 (alunos com a idade de nove anos, mas que evidenciaram, no trabalho do 2 º ano do 1º Ciclo, dificuldades nas áreas do conhecimento curricular) e mais 7 alunos que pertenciam a turma de progressão BP1. O traço distintivo que aproximava-os eram as dificuldades para a aprendizagem, manifestadas de diversas formas, em relação ao processo de alfabetização, na leitura e compreensão de textos, nos relacionamentos interpessoais, na atenção restrita para a realização das tarefas propostas, assim como na conclusão dos trabalhos individuais e de grupo.

 

As características definidoras de turma de progressão a colocam como uma opção diferenciada para atender alunos com defasagem de idade e escolaridade. No cotidiano escolar, observa-se que a turma de progressão tem assumido um papel destacado como articulador de ações educativas que privilegiam o atendimento diferenciado, por parte dos professores e equipe pedagógica, dos alunos que necessitam de um "olhar" mais apurado as suas necessidades de desenvolvimento. No momento em que os alunos atingem um patamar mais elevado de desenvolvimento global, percebe-se que este "salto cognitivo" permite a efetivação de processos de progressão, no espaço escolar. No caso da Turma BP3, este processo deu-se com um número significativo de alunos, o que permitiu a progressão da turma como um todo, mantendo basicamente os mesmos alunos e professores, no mesmo espaço físico já ocupado, constituindo-se num processo pedagógico singular .

8.2 O Processo de Transformação de Turma BP3 para Turma B16

 

 

Apesar das dificuldades para a aprendizagem constatadas nos alunos que exigiram a formação da Turma BP3, após o início das atividades escolares, a turma passou por transformações importantes que levaram a redimensionar a ação educativa na busca de melhores possibilidades de aprendizagem para o grupo.

 

Após o início das atividades escolares foi interessante perceber o avanço de vários alunos, no que se refere ao desenvolvimento da expressão escrita, na leitura e da compreensão dos temas estudados em sala de aula. A grande maioria destes alunos, ou seja, dezessete, evidenciaram condições mínimas para avançarem em seus estudos para uma turma de ano-ciclo próxima de sua faixa etária e das características próprias de seu desenvolvimento. Em reunião de planejamento, anunciei à equipe pedagógica da escola o bom desempenho dos alunos e este foi encarado como um resultado importante. O nível das produções apresentadas pela turma e o crescimento pessoal de muitos alunos traduzia-se em um bom ritmo de trabalho coletivo. Diante disso, entendeu-se a possibilidade, no mínimo, para certos alunos progredirem para uma turma de 1º. ano do 2º. Ciclo. A solicitação foi encaminhada para discussão junto à equipe diretiva para análise das possibilidades de proceder à progressão de toda a turma. A partir das deliberações anunciadas pelos Serviços de Orientação Educacional e Supervisão Pedagógica, foi viabilizada a formação de uma nova turma utilizando as mesmas condições de recursos físicos, equipamentos e recursos humanos disponíveis na turma de progressão já existente.

 

Em decorrência das alterações que a formação da nova turma acarretava na lógica de número de alunos, a equipe diretiva solicitou a elaboração de uma justificativa que foi redigida pelos professores responsáveis pela nova turma. Dessa forma, buscou-se manter o número reduzido de alunos, tal como constava na turma de progressão, apesar da alteração provocada pela transformação para turma do ano-ciclo. Outro dado, que passou a significar importante argumento, referia-se ao processo de avaliação destes alunos. Todos os alunos classificados como P3 e, portanto, sujeitos a um atendimento especializado, exigiam maior envolvimento nos atendimentos individuais, por parte de seus professores. Da mesma forma, ao levar em consideração as características inerentes ao ritmo de trabalho pessoal de cada um, o sistema de avaliação proposto para as escolas cicladas mantinha a premência de um acompanhamento diferenciado.

 

Com o intuito de garantir o melhor processo possível de inclusão destes alunos no novo contexto escolar do 2º Ciclo, foram pensados critérios comuns para a progressão. Os pontos a serem levados em consideração, procuravam ressaltar o bom desempenho do aluno na realização das tarefas, com destaque para a fluência nas atividades que envolviam a leitura e escrita, na capacidade de compreensão e interpretação nos temas em estudo e a possibilidade de utilizar os recursos disponíveis na biblioteca, via Internet, ou através da mídia para aumentar e melhorar seus conhecimentos, bem como as parcerias estabelecidas no grupo de colegas e junto aos professores, que garantiam os relacionamentos interpessoais, essenciais para a realização do projeto pedagógico. Em certos casos, situações ocorridas em anos anteriores eram relembradas para estabelecer parâmetros avaliativos em relação ao desempenho atual que ora apresentavam. Os alunos pertencentes as outras duas turmas de progressão: AP1, turma de progressão do 1º Ciclo e BP2, turma de progressão do 2º Ciclo e que apresentaram avanços significativos na direção apontada, foram incluídos no mesmo processo de progressão. Num primeiro momento, as professoras responsáveis por estes alunos, nas turmas de progressão, avaliaram o nível de aprendizagem de cada um deles, tendo em vista a enturmação para o 1º Ano do 2º Ciclo. Em decorrência desta avaliação ampla realizada nas três turmas, aumentou o número de alunos em condições semelhantes de desenvolvimento pessoal e de aprendizagem, com possibilidades de progressão.

 

A partir da constatação que havia um significativo número de alunos em condições de progressão, buscou-se uma alternativa. A possibilidade de enturmação pensada foi a criação uma nova turma: a Turma B16. O objetivo imediato era o de permitir o avanço dos alunos da BP3, além de dois alunos da Turma AP1, turma de progressão do 1º Ciclo e quatro alunos da Turma BP2, também uma turma de progressão do 2º Ciclo. Além destes, uma aluna da Turma A31 que fora enturmada erroneamente por falta do histórico escolar, na ocasião da matrícula seria incluída nesta nova turma. Esta possibilidade foi discutida junto à Equipe Diretiva da Escola que ponderou a respeito da criação da nova turma para atendimento a este grupo de alunos. Ficou acertada a data de 02 de maio para o início das atividades da Turma B16.

 

A justificativa apresentada para a formação desta nova turma foi encaminhada aos serviços competentes da mantenedora e nesta constava que todos os alunos freqüentavam o Laboratório de Aprendizagem ou a Sala de Integração e Recursos e, portanto, precisavam de intervenções pedagógicas mais específicas, capazes de proporcionar apoio constante no cotidiano escolar. Assim, justificou-se como prioridade da escola a garantia na formação de uma turma com número reduzido de alunos, em relação as demais do 1° Ano do 2º Ciclo. Além disto, o coletivo de professores, também, passou a contar com a presença constante de uma das professoras responsáveis pela maioria das disciplinas do currículo escolar, ainda que mantendo a estrutura básica das aulas especializadas de Arte-Educação, Educação Física e Língua Estrangeira. Houve uma alteração no coletivo de professores que se referia à Arte-Educação, em que a turma B16 passou a ter aulas de Teatro, ao invés de Música devido a ajustes de carga horária no contexto maior da escola. Por fim, ficaram acertados horários de planejamento comuns com os demais professores do ano-ciclo, com o objetivo de realizar os planejamentos semanais.

 

 

8.3 Os Alunos Selecionados para a Pesquisa e a Atuação de Pesquisadora

 

 

Ao atuar no duplo papel de professora da turma de alunos e de pesquisadora, ocupava um lugar privilegiado para a observação das inúmeras situações ocorridas no contexto da sala de aula. Vi despontar muitas inquietações que me levaram a refletir, incansavelmente, sobre a trajetória percorrida por determinados alunos. Os aspectos que levaram à escolha destes para a pesquisa estiveram relacionados diretamente ao contexto de sala de aula, aos relacionamentos estabelecidos, com colegas, professores e demais elementos do grupo da escola. Havia, também, distintas características na história de vida dos cinco sujeitos envolvidos, que os colocavam em situação de desvantagem pelas situações adversas que atravessavam seu cotidiano. Certamente, um dos aspectos mais marcantes que os aproximava um dos outros era a necessidade de um atendimento complementar, um olhar focalizado em suas necessidades de aprendizagem.

 

Ao levar em consideração estes aspectos foram selecionados cinco alunos, os quais serão representados por pseudônimos e que merecem uma apresentação personalizada, destacando alguns aspectos de sua trajetória pessoal e escolar.

 

1. JOÃO PAULO

 

A sua idade era de 10 anos e 6 meses, quando do início da pesquisa. Iniciou sua escolaridade na Escola Monte Cristo, no ano de 1995, em turma de Jardim de Infância. Estava freqüentando a turma de progressão pelo segundo ano consecutivo. Apresentava excelente domínio corporal. O relacionamento no grupo de colegas era amistoso e conseguia dialogar com todos. Era bastante organizado e interessado por tudo o que acontecia na escola. A sua fluência verbal era muito boa e costumava relatar experiências pessoais, confrontando com o tema em discussão na sala de aula. As dificuldades mais importantes pareciam concentrar-se no processo de alfabetização, pela extrema dificuldade em avançar no processo de construção da leitura e da escrita.

 

 

2. CARLOS ANTÔNIO

 

O aluno freqüentava a Escola Monte Cristo, desde 1995. A sua idade era de 10 anos e 4 meses, quando do início da pesquisa. Sofria problemas crônicos de saúde, tais como: subnutrição, sinusite, infecções na pele e ausência das condições mínimas de higiene pessoal . Estava freqüentando a turma de progressão pelo segundo ano consecutivo.

 

As dificuldades para a aprendizagem concentravam-se na área da expressão. Encontrava-se num estágio desenvolvido de alfabetização, realizando a leitura de pequenos textos, embora apresentasse um vocabulário muito reduzido para a redação de seus textos. Conseguia realizar atividades que envolvessem o pensamento lógico-matemático.

 

No cotidiano de sala de aula, o aluno costumava aproximar-se e contava-me alguns de seus problemas. Não demonstrava inibição em dizer que estava sem comer há muito tempo, ou que algum dos seus sete irmãos tomou-lhe o material escolar e por isso, não tinha como escrever. O seu relacionamento com os colegas era tranqüilo. Entretanto, com a maioria dos professores era bem mais difícil. Costumava apresentar extremas alterações em seu comportamento, de acordo com o educador que estivesse coordenando as atividades. Tinha atitudes que demonstravam querer chamar a atenção; saía da sala sem pedir, recusava-se a executar as propostas de trabalho e agitava os colegas propondo brincadeiras inadequadas.

 

 

 

 

3. MARIA EDUARDA

 

A sua idade era de 10 anos e 11 meses, quando do início da pesquisa. Estava freqüentando turma de progressão pelo 3º ano consecutivo. Apresentava muitas dificuldades nas atividades que envolviam o raciocínio lógico-matemático, assim como para avançar no processo de alfabetização.

 

A aluna apresentava um relacionamento cordial no grupo de colegas e com as professoras. Participava de todas as atividades propostas, com interesse. Na maioria das vezes, concluía as tarefas propostas com organização, embora demonstrasse extrema dificuldade para compreender e realizar as atividades de sala de aula com originalidade, imprimindo a sua marca pessoal no que fazia. Era como se fosse sempre uma "sombra" de algo ou de alguém que ela costumava copiar como modelo.

 

 

4. PEDRO

 

A sua idade era de 13 anos e 3 meses quando do início da pesquisa. Ingressou na Escola Monte Cristo no ano de 1998, tendo sido, em precedência, aluno de uma escola especial. Houve um longo processo de adaptação representado por uma passagem gradual da escola especial para a Escola Monte Cristo. No início, freqüentava, apenas, as aulas de Arte-Educação. No ano seguinte, passou a compor uma das turmas de progressão da escola e freqüentava, inicialmente, as aulas de Educação Física, para depois se estender às demais aulas, no segundo semestre letivo. Desde a fase de adaptação, era atendido pela Sala de Integração e Recursos, período que findou no início do ano letivo de 2000.

 

As suas maiores dificuldades relacionavam-se com a instabilidade emocional para permanecer no convívio entre colegas e professores, no decorrer das aulas. A sua tendência era de isolar-se permanecendo, ocupado com seus próprios pensamentos. Contraditoriamente, observa-se um contato físico caloroso com os colegas, quando chegava à escola, pois mostrava-se carinhoso abraçando a todos com saudações efusivas. O mesmo acontecia com aqueles professores que já conhecia há mais tempo.

 

Apresentava bom potencial cognitivo em todas as áreas do conhecimento. Realizava leituras sobre os mais diversos temas, demonstrando especial predileção por notícias veiculadas nos meios de comunicação em que a sua memória extraordinária lhe permitia relatar os mais diversos assuntos.

 

 

5. TATIANA

 

A sua idade era de 9 anos e 7 meses, quando do início da pesquisa. Era aluna da Escola Monte Cristo, desde o 1º ano do 1º ciclo. Estava freqüentando a turma de progressão pela primeira vez.

 

Nas atividades relacionadas à leitura e escrita demonstrava boa capacidade de entendimento das propostas de trabalho. A maior dificuldade concentrava-se na organização para iniciar os trabalhos, o que a impedia de concluir as tarefas no tempo previsto. Além disso, provocava conflitos entre os colegas pela sua intolerância em aceitar a opinião alheia, assim como para compartilhar espaços e materiais coletivos.

 

 

 

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9. A aprendizagem dos Alunos no Contexto da Pesquisa

De súbito, levantou-se da cadeira com os gestos desordenados de quem não vê, agarrou na pilha de folhas escritas em Braille e saiu em marcha certa e segura: o braço direito a segurar o ombro da companheira que a antecedia, no ombro direito a mão da outra que a seguia. Em fila, braço estendido, mão com ombro, ombro com mão, na simbiose dos avisuais. ("Bafo com bafo, cheiro com cheiro".) Cabeça levantada, a contemplar o tecto que não via, lá seguia ela, resoluta, no meio das duas nas mesmas circunstâncias, não vêem o mundo, mas sentem-no, vivem-no.

(José Saramago, 1999, p.89)

 

 

Os sujeitos selecionados apresentavam singulares percursos de aprendizagem que mostravam relação com suas histórias de vida. Mesclam-se, assim, corpos, afetos, interações grupais e instituições. Procurou-se destacar o cotidiano, com ênfase nas interações de sala de aula e nos demais ambientes da escola. As observações e as interações tinham o seu eixo indicado pelas questões de pesquisa, procurando ressaltar os movimentos que caracterizaram a evolução do grupo.

 

No período dedicado à coleta de dados, havia a preocupação em apresentar os "componentes" de cada sujeito envolvido na pesquisa, isto é, aqueles elementos relacionados às falas, comentários ou trechos do diário de campo que permitissem captar informações relacionadas as aprendizagens do grupo de alunos. Ao procurar avançar nessa direção foram coletados depoimentos, com o auxílio de um gravador e posteriormente transcritos, ao final do ano letivo, a partir da seguinte questão norteadora:

 

"De tudo o que eu aprendi como aluno da B16, o que realmente valeu a pena foi..."

 

As informações recolhidas a partir desta questão sobre os sujeitos envolvidos na pesquisa serão apresentadas ao final do trecho correspondente a cada um deles.

 

 

 

JOÃO PAULO

 

 

9.1 João Paulo

Para proceder à analise das características mais gerais na forma de agir do aluno João Paulo torna-se necessário examinar, inicialmente, as questões cognitivas colocadas na elaboração do complexo temático "Convivência".

Os professores almejavam priorizar o desenvolvimento de atividades relacionadas entre si que pudessem, através de um nível de aprofundamento criterioso, permitir aos alunos aprendizagens enriquecedoras que os levassem a perceber melhor os possíveis significados da vida em um "mundo sem fronteiras", expressão largamente utilizada nos meios de comunicação de massa, quando se busca compreender os novos desdobramentos da influência de novas tecnologias. O planejamento priorizava ações educativas que favorecessem a qualidade de vida dos alunos e a da comunidade em geral, em que a possibilidade de encurtar distâncias com o desenvolvimento da comunicação instantânea como a Internet, por exemplo, favorecesse a conquista de novos espaços para a convivência e aprendizagem em grupo .

Por sua vez, a organização dos lugares a serem ocupados pelos alunos na sala seguia um ritual de discussão em que cada aluno poderia manifestar-se livremente quanto ao tipo de agrupamento a ser adotado na turma: grupos de quatro, trios, duplas ou classes individuais. Depois disto, os alunos podiam optar quanto ao processo de escolha de "quem senta com quem".

Ao final do mês de maio, propus à turma que reorganizássemos os lugares, tendo em vista que estávamos há aproximadamente dez dias em uma mesma disposição de lugares, e alguns colegas já haviam solicitado que fizéssemos alterações. Surgiram várias propostas entre os alunos, as quais listava no quadro verde:

sentar em duplas

voltar a sentar em grupos de quatro ou cinco

sentar em roda como nas aulas de Língua Francesa

sentar em trios (proposta lançada por João Paulo)

 

Com relação à organização em grupos de cinco, Carlos Antônio pronunciou-se contrário a esta proposição porque segundo ele:"- Não dá certo sentar em cinco porque só tem vinte e três alunos. Vai sobrar gente." A partir de manifestações como essa, o grupo de alunos sentia-se suficientemente esclarecido e apto a passar ao processo de votação. João Paulo manifestara que a melhor maneira de decidir algo era através da votação, ele disse: "- A gente podia votar, ganha a maioria." Passamos, então, ao processo de votação que ficou assim:

Resultado da votação para escolha do tipo de organização dos lugares na turma B16 no dia 29 de maio de 2000:

1. em duplas – 0 votos

2. em grupos de quatro ou cinco – 0 votos

3. em roda – 5 votos

4. em trios – 16 votos

total: 23 alunos( havia dois alunos ausentes neste dia)

21 votantes

Após realizarmos esta etapa de eleição, passamos para a escolha dos companheiros nos trios. Ficou acertado, entre nós que seria chamado um menino e, posteriormente, uma menina. O primeiro aluno a ser chamado teria o direito de escolher mais dois colegas para comporem o grupo. João Paulo destacou-se na escolha de seus companheiros de trios porque, além de não hesitar na escolha dos mesmos, escolheu rapidamente o que seria "o melhor espaço na sala". Puxou as classes para um espaço junto a janela na parte da frente da sala, próximo ao quadro verde. Os dois colegas demonstravam concordar com a sua opção. Ele dizia: - Tu senta aqui!, apontando para a classe, onde uma das meninas do seu trio deveria sentar. Ela sentou sem contestar. Para o outro colega ele disse: - Puxa a tua classe mais para cá, senão fica tudo torto. Após esta movimentação, os demais agrupamentos assumiam suas posições na sala e a aula pôde continuar de acordo com as atividades já previamente determinadas. É importante registrar que, ainda durante este dia, João Paulo ficou incomodado com as constantes conversas de um colega situado num trio próximo ao seu. Diante do fato, ele convocou os dois companheiros e fez a mudança para um outro espaço da sala, em que a conversa do referido colega não atrapalhasse o ritmo de trabalho do pequeno grupo. É possível perceber o quanto João Paulo tinha a oferecer aos colegas em termos de iniciativa e cooperação. Em outros momentos precisava enfrentar suas próprias dificuldades como aquelas relacionadas ao processo de leitura e escrita, as quais o impediam de atuar de forma tranqüila e decisiva, e então recorria aos colegas para resolver suas próprias dificuldades.

 

João Paulo demonstrava grande potencial nas atividades relacionadas com a organização do grupo de colegas, inclusive no espaço informatizado o seu desempenho proporcionava interações enriquecedoras para o grupo de colegas. O seu modo de interagir com colegas e professores constituía-se em elemento enriquecedor para todos, entretanto as maiores dificuldades mostravam-se nas atividades relacionadas ao processo de leitura e escrita.

 

Na maioria das vezes em que a atividade proposta em sala de aula exigia leitura para, posteriormente, realizar a interpretação escrita, João Paulo costumava envolver o maior tempo possível na cópia dos exercícios, preocupava-se com os colegas, se estes necessitavam de algum material escolar, como lápis ou régua e, prontamente, o alcançava. Chegava até mesmo a explicar a atividade para os outros, mas o seu trabalho permanecia em branco. Em certa oportunidade, a tarefa proposta exigia a leitura de enigmas matemáticos para a resolução dos mesmos. Nesta ocasião, agiu como das outras vezes e o seu trabalho estava por fazer, enquanto ficava envolvido com o trabalho dos outros ou mesmo nestas "atividades periféricas". Pedi, então, que se aproximasse de mim e fizesse a leitura dos enigmas que estavam impressos na folha que distribuíra à turma. Neste momento passou a olhar para os lados e em seguida baixou os olhos e nada dizia. Questionei-o mais uma vez, perguntando se era capaz de ler o que estava na folha e ele demonstrava estar cada vez mais tenso. Perguntei-lhe, então, se gostaria de fazer a atividade com outro colega, entretanto, não poderia simplesmente copiar as respostas, como já fizera em outras momentos. Ele respondeu: "- Eu tenho vergonha de pedir ajuda, de não saber ler." Perguntei-lhe se ele tinha certeza que não sabia ler e ele respondeu que sim. Pedi, então, que fizesse mais uma tentativa e que para isto poderia contar com a ajuda do colega que quisesse, mesmo que não fizesse parte do seu trio. Ele escolheu Carlos Antônio, colega como qual mantém amizade, desde o Jardim de Infância, freqüentando ambos as mesmas turmas, desde aquela época, na Escola Monte Cristo. Ficou combinado que os dois fariam a leitura juntos e que João Paulo tentaria ler e escrever as respostas, a partir dos seus conhecimentos. Os dois procuraram um espaço mais reservado na sala e, de longe, pude constatar o envolvimento na atividade. João Paulo ainda estava um pouco tenso, mas aos poucos foi ficando mais a vontade enquanto tentavam ler as questões, faziam comentários e procuravam encontrar as respostas. Mais tarde, João Paulo veio apresentar-me a tarefa e respondeu "- Foi fácil. É que eu não tinha entendido direito o que era pra fazer." Questionei-o quanto a leitura e ele respondeu : "- Eu sei ler mais ou menos, mas ainda tenho que melhorar."

Certamente, João Paulo ainda enfrentará muitas dificuldades na conquista de suas aprendizagens, entretanto a possibilidade de atuar com outros colegas, buscando estabelecer um processo de ajuda recíproca tem se mostrado como a chave de um trabalho desafiador no espaço de sala de aula. Além disto, as questões propostas no espaço maior da escola, a partir da elaboração do complexo temático, tem dado pistas sobre o caminho a ser perseguido na aprendizagem, também, para os alunos em situação de desvantagem, tanto em relação aos temas de estudo a serem desenvolvidos, assim como para explicitar os pressupostos teóricos mais gerais da escola que passam pela integração, pelo trabalho coletivo e a constituição de espaços de interajuda.

Em seu depoimento sobre as aprendizagens significativas realizadas no decorrer do ano letivo, declarou o seguinte:

Meu nome é João Paulo, tenho 11 anos. Eu aprendi muita coisa. Eu aprendi a ler e escrever mais ou menos, só. Eu tive várias aulas especializadas. Eu aprendi a fazer amigos e fazer as vontades dos meus amigos.

 

 

 

CARLOS ANTÔNIO

 

 

 

9.2 Carlos Antônio

Na turma de alunos, o trabalho cotidiano priorizava a discussão dos aspectos relacionados ao tema "Convivência" proposto no complexo temático e este enfoque levou ao estabelecimento de muitas "combinações" quanto ao uso dos espaços na sala de aula por todos os alunos. Carlos Antônio era um aluno que costumava demonstrar resistência em manifestar as suas impressões pessoais aos outros, apesar de descrever na sua fala reflexões significativas, que demonstravam interesse e dedicação por este assunto. Em uma destas oportunidades, estávamos envolvidos na reorganização dos grupos em sala de aula. Os alunos apresentaram algumas sugestões e ficou acertado que a forma de organização dos grupos seria através de cartões coloridos que cada aluno escolheria, de forma aleatória em grupo, representados pelas cores: azul, vermelha, amarela e marrom. Recebi a tarefa de confeccionar os cartões e teria que disponibilizar seis cartões de cada cor para os alunos retirarem o seu, um de cada vez e irem formando os grupos. Carlos Antônio manifestou-se anunciando a regra máxima: " – Não vale trocar de grupo. Tem que aceitar o que der no sorteio!" Procedemos à escolha dos cartões coloridos e os grupos foram sendo formados. Alguns alunos se abraçavam por terem ficado com os amigos no mesmo grupo. Quando chegou o momento de Carlos Antônio realizar a sua escolha, olhou para os cartões dos demais colegas e descobriu que ficaria no grupo com três meninas. Ele ficou furioso, olhava para os lados e caminhava de um lado para o outro. Uma das meninas chamou-o várias vezes para que se aproximasse para escolherem o espaço da sala de aula que ocupariam. Entretanto, ele não conseguia aceitar tão facilmente o seu "destino" e ficou encostado na parede, sentado no chão sem dizer palavra. Enquanto isto, anunciei aos alunos que iríamos realizar a leitura dos livros retirados no "Caminhão Leia Brasil", de acordo com os novos grupos formados. Num primeiro momento, Carlos Antônio permaneceu recostado na parede. Uma das meninas questionou-o sobre o que ele iria fazer. Ele respondeu: - Qualquer coisa tá bom. Passados alguns minutos a mesma aluna veio até mim e queixou-se das atitudes de Carlos Antônio. Quando questionei-o, respondeu-me: - Não tem nada, tá tudo bem. Percebi que estava cabisbaixo e parecia chorar, mas deixei-o a vontade para escolher o que fazer. Mais tarde, outra menina do grupo reclamou para mim que o Carlos Antônio iria ficar fora do grupo porque não queria fazer nada. Disse-lhe que deixasse para ele esta escolha. Depois de alguns minutos, aproximou-se do grupo e procedeu a leitura coletiva do livro, contribuindo para o enriquecimento da atividade. Na segunda etapa da tarefa, também contribuiu, pois cada um teria de escrever com suas palavras um trecho da leitura e ilustrá-lo no cartaz. Observei que ele participou até o final.

 

Houve uma outra situação ilustrativa sobre as questões de liberdade e responsabilidade em que Carlos Antônio destacou-se pelo tipo de atitude que assumiu perante o grupo de colegas. Na ocasião era necessário que alguém entregasse a autorização de um passeio que aconteceria na semana seguinte para a turma. Alguns alunos estavam na aula de Teatro e já estávamos no último período. No dia seguinte, eu não estaria na Escola e, por isso, precisava de ajuda. Prontamente, Carlos Antônio assumiu esta tarefa e disse: "- Professora deixa eu entregar os bilhetes. Eu guardo na minha pasta e se faltar alguém eu anoto os nomes." Carlos Antônio mostrou-se resoluto e não hesitou em assumir a tarefa, inclusive, apontando soluções diante de eventuais dificuldades. Quando retornei a sala de aula, dois dias depois, todos os alunos tinham recebido os bilhetes, vários deles já retornavam com a autorização assinada, que era o mais importante devido ao curto espaço de tempo. Carlos Antônio agiu de maneira determinada e tinha convicção de que seria capaz de cumprir a tarefa, em nenhum momento mostrou-se hesitante e demonstrou entrosamento com a turma de colegas.

 

Durante o ano, as atividades desenvolvidas no ambiente informatizado constituíram-se em importante elemento desencadeador de aprendizagens no grupo de alunos. Carlos Antônio destacou-se nestes momentos por sua desenvoltura e interesse manifestados. No mês de abril recebemos a visita do professor Claudio Roberto Baptista. Nesta oportunidade os alunos puderam mostrar a sala de aula, as suas produções escritas e conversar com o visitante. Passados alguns dias, os alunos perguntavam seguidamente quando o professor iria nos visitar novamente. Ao relatar-lhe o fato, sugeri que utilizássemos o correio eletrônico para realizarmos contatos mais freqüentes. Fomos até a sala de computação e a professora coordenadora do ambiente informatizado, nos orientou quanto à possibilidade de abrirmos um e-mail com o nome da turma para mantermos correspondência. Tivemos dificuldades, durante algum tempo, para a instalação do e-mail devido a problemas com a chamada "rede" que mantém todos os terminais de computador de órgãos públicos municipais ligados pelo sistema implantado pela Procempa. Apesar destas dificuldades iniciais consegui realizar as atividades pensadas no grupo com a ajuda de uma estagiária e da professora Jussara, coordenadora da sala de informática.

 

Num primeiro momento, discutimos com os alunos a finalidade de uma correspondência, esclarecendo o que é o sistema de correio e as possibilidades oferecidas pela tecnologia nos tempos atuais. A respeito da correspondência virtual tivemos uma pequena exposição na sala de informática com a professora responsável. No dia seguinte, os alunos elaboraram em sala de aula, o esboço do texto a ser enviado e, posteriormente, nos dirigimos à sala de informática. Ficou combinado que a turma ficaria distribuída em trios como na sala de aula, ocupando cada um dos terminais de computador disponíveis na sala, que eram em número de oito. Carlos Antônio estava sentado com um colega e disse: - Eu começo a escrever a primeira linha e depois tu continua! O colega acompanhava atentamente o que ele fazia, enquanto esperava sua vez. Carlos Antônio olhava para o relato escrito na folha de papel e encontrava rapidamente as letras que queria. Ele passou o teclado para o colega escrever a sua parte. Quando retornou a utilizá-lo indagou: - Tu sabe fazer a letra grande de nome? O colega respondeu com um aceno de cabeça que não. Sem hesitar, Carlos Antônio dirigiu-se até a professora coordenadora da sala e perguntou como se fazia a letra grande. Ela se aproximou do terminal, em que estavam trabalhando, e mostrou o que deveriam fazer para escrever com a letra maiúscula. Carlos Antônio repetiu o procedimento orientado com facilidade e seguiu com a escrita do texto. Mais tarde, a professora coordenadora comentou que tinha ficado impressionada com a facilidade com que ele utilizara o teclado, entendia com facilidade as orientações e estava ávido por aprender mais.

 

Esta situação permitiu a comparação com um momento anterior no qual Carlos Antônio demonstrava muita dificuldade para escrever uma história em quadrinhos sobre o tema em estudo, naquela oportunidade.

 

Quando Carlos Antônio apresentou-me a produção escrita, antecipou-se dizendo: - Ah, eu escrevi tudo errado, eu sei que está errado! Enquanto falava, mexia com a folha para lá e para cá, impedindo que eu focalizasse com atenção o seu trabalho. Após solicitar a folha e observar o que tinha feito, conversei com ele sobre a importância de escrever de forma mais independente, sem preocupar-se com a perfeição no que estava fazendo. Apesar disto, mostrava hesitação e tinha medo de escrever. Entretanto, diante do teclado de computador e percebendo a finalidade que o seu texto escrito teria ao enviar uma mensagem dizendo de seus sentimentos e impressões, ele parecia ter encontrado um incentivo para envolver-se no mundo da escrita com mais vigor e determinação. Segue um trecho de sua mensagem para o professor Claudio, tal como foi escrito na folha de papel, antes de ser digitado:

 

PROFESSOR CLADIO:

PROFESSOR CLADIO NOS COMTAMO QUE VOCE VOUTE AQUI

PROFESSOR CLAUDIO VOSE E LEGA PARA NOS

NOS FIZEMU UM DEZENHO PARA VOCE, MAS NÃO DA PARA MANDA NO COMPUTADOR

EU TO BEM COMPORDADO NA AULA DA LENISE

BEM COMPORDADO NA AULA DE LABORATORIO

MAS VOCE E LEGAU PROFESSOR CLADIO

EU JÁ CEI ESQUEVER O CEU NOME

VOCE É LEGA CARLOS ANTÔNIO

A partir do texto transcrito acima é possível perceber o quanto Carlos Antônio foi capaz de manifestar suas emoções a respeito dos acontecimentos ocorridos na turma. Para este trabalho não hesitou em utilizar a escrita e quando mostrou-me o texto manuscrito queria que eu fizesse as correções para suprimir os erros de ortografia, quando da digitação. Ao digitar o texto no terminal de computador, teve facilidade para reparar seus próprios erros. Dessa forma, a correção ortográfica que, às vezes, é cansativa e enfadonha passou a compor parte importante na realização da tarefa. Os aspectos relacionados à responsabilidade e liberdade ficam explicitados nas atividades descritas acima por seus aspectos constitutivos, em que o agir do sujeito manteve relações estreitas com os objetivos que pretendia. Carlos Antônio queria enviar uma mensagem dizendo o quanto queria bem ao professor Claudio e isso era importante e os distinguia dos demais na medida que permitia que manifestasse os seus sentimentos, agindo com liberdade. Ao mesmo tempo, o que ele disse o comprometia dando-lhe responsabilidades diante dos demais porque expressava uma maneira de viver o mundo, e sentir as coisas, que era só sua.

 

A respeito de suas impressões sobre o trabalho desenvolvido ao longo do ano, Carlos Antônio declarou o seguinte:

Meu nome é Carlos Antônio, tenho 12 anos. Eu aprendi a ler, a escrever, a ajudar o meu colega a escrever e aprendi a dividir as coisas da sala. Aprendi a fazer conta de vezes, de mais... mais ou menos! (deu uma risada) e só.

O acontecimento mais marcante do ano foi no dia que a senhora fez aniversário.

 

 

 

MARIA EDUARDA

 

 

 

9.3 Maria Eduarda

 

Maria Eduarda caracterizava-se, desde o início do ano letivo, por mostrar-se em sala de aula, na maioria das vezes, calada e mergulhada em seus próprios pensamentos. Costumava atender às solicitações de sala de aula, levada pela observação cuidadosa que mantinha dos movimentos e ações dos colegas os quais procurava imitar para cumprir as tarefas propostas, com êxito. Através de suas atitudes, demonstrava interesse em concluir o trabalho proposto, o que a levava a romper o silêncio em que se encontrava pedindo ajuda ao colega mais próximo, embora o diálogo travado entre os dois permanecesse inaudível para os demais presentes. A aluna falava pouco e, raramente, expressava reação diante dos fatos cotidianos do ambiente escolar, o que a colocaria na categoria de "uma aluna que não incomoda" segundo o consenso da maioria de seus professores. Esta situação, perdurou por alguns meses, mantendo o distanciamento de Maria Eduarda das situações cotidianas.

 

Um evento importante, ocorrido no mês de junho, apontou alterações na sua forma de agir. A turma de alunos encontrava-se no refeitório fazendo o lanche da tarde quando Maria Eduarda aproximou-se de mim espontaneamente e começou a relatar a respeito de um certo vestido de prenda que iria ganhar nos próximos dias todo cor de rosa, o qual seria visto por todos no dia da festa junina da escola. Maria Eduarda contou, com detalhes, como era este vestido: a saia longa e rodada, os topes e babados, presente de sua mãe. O sorriso estampado em seu rosto demonstrava o quanto estava feliz com este presente. Outro dado importante é que tinha feito este relato diante de um grupo de colegas, sem demonstrar o menor traço de constrangimento ao expor suas emoções. Após este episódio, sucederam-se situações no cotidiano escolar em que a sua voz passou a figurar com maior freqüência e, mais do que isto, a sua vontade era demonstrada diante dos diversos acontecimentos do dia-a-dia.

 

Em certa ocasião, a turma retornava do recreio e um colega entrou correndo na sala, dirigindo-se abruptamente em minha direção e relatou-me que Maria Eduarda o teria ofendido, chamando-o de "gay". O colega mostrava-se ofendido com o xingamento e exigia que algo fosse feito sobre o ocorrido. Ao retomar o assunto com as partes envolvidas Maria Eduarda mostrava-se tranqüila e confiante e não hesitou em declarar que estava se defendendo de outras tantas ofensas, tal como ter sido chamada de "popozuda". Após os devidos esclarecimentos cada qual pôde retornar às atividades escolares.

 

A análise da situação acima descrita permite elaborar inferências sobre as possibilidades de Maria Eduarda quando demonstrou ter conseguido agir de acordo com suas emoções, foi capaz de falar e expressar sentimentos que, normalmente, seriam sucumbidos pela sua timidez e acanhamento. Porém, desta vez foi diferente, pois conseguiu agir no momento em que a situação se deu, externando seu descontentamento, sem temer represálias.

 

Em outro momento, Maria Eduarda demonstrou novas conquistas. Após um período de dois meses em atendimento individualizado na Sala de Integração de Recursos apresentou um convite para a turma em que os colegas e professores estavam convidados a conhecerem a sua "casinha cor de rosa". O convite foi confeccionado por ela e lido por mim em sala de aula. Ao mostrá-lo estava encabulada, ao mesmo tempo que exibia um sorriso de contentamento. No dia em que visitamos a Sala de Integração e Recursos, os alunos dirigiram-se rapidamente até a casinha cor-de-rosa. Faziam perguntas à Maria Eduarda:

 

- Como é que tu conseguiu fazer o fogão e a geladeira tão pequeninhos?

- O que tu fez para as paredes ficarem de pé e não caírem?

- Bah, mas tu levou um tempão para fazer tudo isso, né?

- E agora, tu vai levar para a tua casa a ‘casinha’?

 

A estas perguntas ela respondia brevemente, mas com informações precisas que demonstravam o grau de envolvimento que teve com a tarefa. Afirmou que não tinha sido difícil fazer a casinha porque a professora a ajudou e ela tinha a seu dispor bastante papelão cola e tintas para fazer a casa do tamanho que quisesse. Revelou, também, que desejava construir uma casa parecida com aquela que o seu avô tinha lhe presenteado, em madeira, no ano passado, antes de falecer. Disse que a melhor parte foi fazer os móveis do tamanho certinho para acomodar nos cômodos: sala, cozinha, banheiro e os dois dormitórios. Ao final da visita os alunos tinham percorrido a sala inteira descobrindo outros achados preciosos como jogos, livros de literatura e desenhos e construções em isopor e argila de outros alunos que freqüentavam a sala. Ao final deste momento, Maria Eduarda "apresentou" o relato escrito de como foi o processo de construção da casinha, lido pela professora da Sala de Integração e Recursos. Apesar de não se sentir em condições de realizar a leitura, em voz alta, ela acompanhava-a na voz da professora da Sala de Integração e Recursos que fez a narração.

 

Em outra ocasião, já era o mês de outubro, a turma de alunos estava envolvida na realização de exercícios sobre operações matemáticas de multiplicação. Este campo do conhecimento mostrava-se até então como uma fonte de angústia para Maria Eduarda, pois demonstrava medo ao realizar qualquer tipo de atividade que exigisse raciocínio abstrato. A sua conduta usual era a de copiar as respostas dos colegas, esperando que alguém lhe dissesse como deveria preencher os exercícios. Entretanto, nesta oportunidade, a aluna reagiu de outra maneira, mostrando-se atenta às explicações e procurando realizar as propostas com independência. Logo que as concluiu veio mostrar-me o seu caderno e pude constatar que as respostas estavam corretas. Quando questionei-a quanto ao resultado obtido, respondeu-me que isto se devia ao auxílio recebido de sua mãe, que tinha realizado uma série de "continhas" para ela em casa, há vários dias. Entretanto, é interessante notar que a sua mãe não é alfabetizada, de acordo com o que esta relatava em reuniões de pais, quando costumava solicitar à professora auxílio para que escrevesse o seu nome na ata de reunião. Portanto, esta "ajuda" que Maria Eduarda afirmou ter sido tão importante para a realização das atividades matemáticas passou pelo domínio no qual mãe e filha (observadoras) existiam e operavam. Isto é, da mesma forma que para existir linguagem nem sempre é preciso que aconteça um diálogo explícito entre seres falantes, também para estabelecer uma relação entre a mãe que ensina e a filha que quer aprender, nem sempre a mãe precisará possuir muitos conhecimentos do universo letrado, pois as suas experiências de vida com o mundo dos números lhe permitiram construir atos capazes de fazer descrições que constituem a linguagem e, assim, conseguiu auxiliar a sua filha. A respeito da natureza da ciência, que é o conhecimento, destaco Maturana:

 

Em outras palavras, não estamos habitualmente atentos para o fato de que a ciência é um domínio cognitivo fechado, no qual todas as afirmações são, necessariamente, dependentes do sujeito, válidas somente no domínio de interações no qual o observador padrão existe e opera. (...) Somente quando queremos considerar o observador como objeto de nossa investigação científica, e queremos compreender o que ele ou ela faz quando faz afirmações científicas, bem como a maneira pela qual essas afirmações são operacionalmente efetivas, é que enfrentamos um problema se não reconhecemos que a natureza da ciência é dependente do sujeito. (Maturana, H., 1997b, p. 125)

 

Portanto, Maria Eduarda precisou estabelecer relações entre o conhecimento que possuía em sua vida familiar, ligados a sua infância e os constantes desafios colocados pela cotidiano escolar, no intuito de construir "pontes" que lhe permitiram atingir sentido naquilo que seria o resultado das interações com os colegas, professores e demais elementos do universo escolar. Ao conseguir estabelecer estas "pontes" entre o que já conhecia e o que poderia descobrir de inédito e transformador, Maria Eduarda conseguiu sorrir, falar, mostrar para os outros com orgulho o que era capaz de fazer.

Com relação ao trabalho desenvolvido a partir da questão norteadora, as reflexões de Maria Eduarda foram as seguintes:

Meu nome é Maria Eduarda, tenho 11 anos. Eu gostei dos passeios. Gostei de aprender as coisas novas e de brincar com os colegas. NA SIR eu também aprendi coisas novas. Aprendi a trabalhar na aula com a professora Lenise.

O acontecimento mais marcante do ano foi nos passeios, no dia do passeio do Arco-Íris.

 

 

 

PEDRO

 

 

 

9.4 Pedro

Quando do início do ano letivo, Pedro demostrava uma tendência a isolar-se do contato com os colegas. Durante as aulas, era comum fixar o olhar em um ponto externo através da janela da sala, enquanto balançava-se para frente e para trás em sua cadeira murmurando longos monólogos com informações compostas por frases veiculadas através dos meios multimídia, especialmente, nos jornais e na televisão. Costumava narrar anúncios publicitários, notícias sobre personalidades famosas ou mesmo algum tipo de ocorrência policial.

 

A proximidade da chegada do novo milênio suscitou interesse por este tipo de assunto, levando à escolha do nome da turma como: "Geração 2000". Uma situação ilustrativa a este respeito, ocorreu quando a turma estava envolvida na redação de um texto coletivo, sobre a leitura comum de um livro de literatura infantil sobre viagens espaciais e extraterrestres.Como este assunto causava empolgação em certos alunos, era comum que vários falassem ao mesmo tempo, usando um timbre de voz mais alto, dando risadas ou gesticulando, causando muito barulho. Quando isto aconteceu, Pedro ficou agitado, saiu do seu lugar e foi para o fundo da sala, enquanto caminhava desorientado ao redor de si mesmo. Quando questionei-o sobre o que estava acontecendo, ele não soube responder e apenas repetia que estava tudo bem, entretanto, suas atitudes denotavam o contrário. Nesta oportunidade, Pedro ainda apresentava extrema fragilidade para suportar a "desorganização" da sala de aula. Essa dificuldade parecia justificar a sua tendência de afastar-se para evitar esta "agitação externa". Pedro apresentava uma certo isolamento, o que limitava as interações com os colegas e professores.

 

Quanto ao aspecto cognitivo, era notável perceber o grande potencial cognitivo que ele apresentava. Refiro-me a cognição como um processo que não se restringe, apenas, a uma capacidade de pensar ligada a processos mentais. Convém destacar o que aponta Capra sobre esta questão:

 

A nova concepção de cognição, o processo do conhecer, é, pois, muito mais ampla que a concepção do pensar. Ela envolve percepção, emoção e ação – todo o processo da vida. No domínio humano, a cognição também inclui a linguagem, o pensamento conceitual e todos os outros atributos da consciência humana. No entanto, a concepção geral é muito mais ampla e não envolve necessariamente o pensar. (CAPRA, 1996, p.145)

Ao longo do ano escolar, Pedro mostrou-se gradativamente mais tolerante e dedicado à realização das atividades propostas e o contato constante na turma permitiu aos demais que pudessem conhecê-lo e entendê-lo melhor. Certo dia, a turma retornava da biblioteca, onde cada um havia retirado um livro para realizar a leitura semanal. Pedro logo que chegou na sala de aula sentou-se e iniciou a leitura do livro "vorazmente". Uma das meninas pediu a ele que lesse em voz alta os trechos que ela apontava no livro. Rapidamente, ele fazia a leitura com eloqüência e interpretação sobre o conteúdo do mesmo, emitindo comentários a respeito do texto lido. Aos poucos, outros colegas se aproximavam e queriam ouvir a narração da história. Uma das meninas exclamou: - Como o Pedro é esperto! Parece uma máquina!

 

Diante de uma oportunidade em que pôde demonstrar sua habilidade de leitura, Pedro conquistou notoriedade perante os colegas. O grupo que estava ao seu redor, descobrira que um dos maiores desafios presentes na turma – alcançar um nível elevado no processo de alfabetização e ingressar no mundo letrado – era uma conquista há muito atingida por Pedro. A "forma diferente" no agir, aparentando estar desatento ou desinteressado pelos acontecimentos no grupo, não o impedia de realizar com sucesso a leitura em voz alta, o que para maioria da turma significava uma grande dificuldade.

 

Em outro momento, a tarefa realizada na turma era a de organizar os trabalhos escritos realizados ao longo do trimestre para a organização do dossiê. Esta atividade poderia ser considerada corriqueira, porque consistia em distribuir aos alunos os trabalhos previamente selecionados junto com os professores e proceder à numeração manual, ao mesmo tempo, em que se fixava na pasta as folhas já perfuradas. A atividade exigia automatismos e repetição de certos procedimentos. Havia a necessidade de representação mental do processo de trabalho realizado anteriormente para o encadeamento dos trabalhos. Pedro mostrava dificuldade em estabelecer relações entre os materiais, relacionando-os a vivências anteriores e assim, traçando a sua própria trajetória. Para a realização desta atividade ele precisou da minha ajuda e dos colegas, demonstrando muita dificuldade para numerar e ordenar as folhas, ou seja, para reconstituir o que ele mesmo tinha vivenciado. Neste momento, aqueles colegas que haviam ficado admirados com a sua fluência na leitura e representação, puderam auxiliá-lo a organizar-se em seus trabalhos. Dessa forma, o processo de ajuda mútua estabelecido entre o grupo, contribuiu na finalização das atividades.

 

As dificuldades iniciais de Pedro para organizar-se na realização das tarefas escolares, assim como para "suportar" a permanência em nosso espaço de convivência escolar foram gradativamente modificando-se e o que antes parecia insuportável, tornou-se elemento motivador de novas aprendizagens. A este respeito, posso destacar a visita que fizemos à 46ª Feira do Livro de Porto Alegre. Dentro das atividades selecionadas no planejamento do complexo temático "Convivência" os professores do 2º ciclo tinham previsto a visita dos alunos a importantes eventos do calendário cultural da cidade de Porto Alegre, com o objetivo de posterior aprofundamento nas atividades de sala de aula. A turma B16 obteve o direito de visitar a Feira do Livro à convite da Associação de Professores de Francês de Porto Alegre. Durante o trajeto de ônibus, Pedro cantarolava alegremente músicas da moda e dançava junto com outros colegas. Este fato chamou a atenção de alguns colegas que chegaram a dizer: - Olha lá, o Pedro tá dançando! Demonstrava estar animado e contente com aquele momento, uma postura bem diferente do início do ano, quando o barulho dos colegas conversando perturbava-o profundamente. Passou algum tempo observando a paisagem e as pessoas, sentado na poltrona do ônibus e, em seguida, passou a fazer comentários em voz alta para os colegas próximos. Pedro era capaz de falar detalhadamente sobre o prédio do Centro Administrativo do Estado, por exemplo, que era muito alto e diferente com uma enorme rampa e que lá trabalhavam políticos importantes, pessoas famosas que cuidavam da cidade. Ao nos aproximarmos da Usina do Gasômetro, Pedro relatou que já havia ido várias vezes até este local e que lá conheceu uma exposição de fotos. Relatou ainda que, ao lado da Usina existia um relógio que marcava o tempo que faltava para a chegada dos "500 anos de Brasil" e que o mesmo tinha sido incendiado, fato que o impressionou, como ele demonstrava, através de seus gestos e palavras.

 

Ao chegarmos na Feira do Livro, Pedro manifestava grande empolgação porque queria abrir os livros, descobrir as novidades que continha e poder contar para os outros. De início, imaginava ser preciso ficar atenta aos movimentos do aluno, pois no meio da movimentação das pessoas, ele poderia distrair-se e ficar afastado do grupo. Entretanto, este medo logo cedeu lugar quando percebi o cuidado que os alunos mantiveram entre si para que ninguém se afastasse. Próximo ao Pedro encontravam-se vários colegas que desejavam saber que novidades ele poderia encontrar e mostrar-lhes. Durante as conversas faziam comentários e davam risadas. Na banca dos livros de Língua Francesa, Pedro ajudou a selecioná-los. A impressão predominante foi que Pedro pôde aproveitar intensamente as diversas experiências daquela oportunidade.

Com relação ao depoimento realizado sobre a questão de realizada ao final do ano as reflexões de Pedro foram as seguintes:

Tudo o que aprendi como aluno da B16, tudo o que realmente valeu a pena foi aprender Francês, a pular corda, a desenhar as coisas de Porto Alegre, os morros de Porto Alegre. Aprendi a fazer a tabuada dos números, conta de menos, de vezes, a retirar os livros da biblioteca, a ler e escrever, a copiar do quadro e o Laboratório. Aprendi a desenhar o Gasômetro, o Centro Administrativo, o Monumento ao Expedicionário, o Arco da Margem e o Praia de Belas. A turma é bem... Eu tenho amigos! O Jorge Luís (apontando o dedo e inclinando o corpo em direção ao colega).

O acontecimento mais marcante do ano foi ver o Morro do Osso, da vista da cidade, do rio Guaíba, do Morro da Serraria, da Ponta Grossa, Morro do Espírito Santo, Morro Alto, Morro da Polícia, Morro Teresópolis, Morro Santa Tereza.

 

 

 

TATIANA

 

 

 

9. 5 Tatiana

Com relação aos elementos que constituíram a atuação da aluna Tatiana, certamente, o delineamento que os relacionamentos, no grupo de colegas, assumiram no cotidiano escolar foram o traço distintivo de sua atuação durante o ano letivo. Inicialmente, sua maior dificuldade era manter a atenção nos movimentos do grupo, permitindo a sua participação nas atividades propostas e, dessa forma, podendo concluí-las. Nas primeiras situações ocorridas em sala de aula, Tatiana costumava ficar envolvida com seus pertences pessoais, apontava os lápis de cor, mexia em sua pasta e pegava os cadernos para fazer anotações, ou mesmo, para mostrá-los aos colegas próximos. Dessa forma, distanciava-se dos temas em estudo, permanecendo alheia às discussões da turma e das propostas de trabalho em grupo ou individuais.

 

Certo dia, trabalhávamos sobre a poesia "Valsa da Vassoura" de Dilan Camargo. Nesta oportunidade, Tatiana demonstrou total descompasso com as propostas de trabalho desenvolvidas no grupo. Enquanto o grupo estava envolvido na leitura silenciosa da poesia, ela preenchia os dados de introdução do trabalho no caderno. No momento de leitura em voz alta e discussão do tema, ficou envolvida em escrever no caderno. Quando a turma realizava a interpretação escrita no caderno, preocupou-se em copiar as questões expostas no quadro-verde para o seu caderno. Logo em seguida, procurou-me dizendo que não sabia o que era para fazer. Nesta oportunidade, questionei-a quanto à forma que poderia proceder para atingir melhores resultados em suas produções escritas. Ao questioná-la sobre as ações empreendidas naquele dia, ela respondeu-me: - Eu "tava" fazendo o trabalho, só que eu demorei um pouco porque eu não achava o meu lápis! Percebe-se que ela, ainda, não conseguia dar-se conta de que precisaria agir no "compasso" do grupo de colegas, procurando junto a este, as soluções dos "problemas diários" e um caminho viável para avançar em suas aprendizagens.

Em outra oportunidade, a aula já havia começado há alguns minutos e a turma estava envolvida na realização de exercícios de multiplicação. Subitamente, Tatiana entra na sala e coloca-se em seu lugar. Antes que eu pudesse me dirigir a ela, uma das professoras que trabalha na secretaria, e que também cumpre a tarefa de recepcionar os alunos, entrava na sala dizendo que a Tatiana estava chegando na sala, naquele momento, porque encontrava-se na secretaria resolvendo um "problema" que ela tinha criado com duas meninas de outras turmas. A professora retirou-se e procurei esclarecer junto a Tatiana o que tinha acontecido. Num primeiro momento, ela olhava fixamente para o chão mantendo-se calada. Depois de alguns instantes, falou sobre uma situação que tinha ocorrido no refeitório envolvendo outras meninas. De acordo com o que me relatara seria muito difícil conseguir esclarecer o assunto somente com ela e, por isso, pedi a ela que se dirigisse às salas de aula das duas alunas, com um bilhete escrito por mim para que viessem até a nossa sala de aula. Ao reunir as três meninas pedi que expusessem com clareza o que havia ocorrido. O diálogo entre elas transcorreu assim:

 

CARLA – Eu quero ser amiga das duas, mas quando eu brinco com a Cristina, a Tatiana fica de mal comigo. E, quando eu brinco com a Tatiana, a Cristina diz que não é mais minha amiga.

CRISTINA – A Tatiana disse que se eu começasse a me exibir, ela daria em mim. Eu saí correndo do refeitório e fui falar pra minha mãe. A Carla disse que eu devia fazer isso.

TATIANA – Não é isso, professora, a minha mãe cuida da Carla lá em casa, e quando a Carla tá lá em casa ela não é assim, não fica se exibindo. Mas quando tá na rua, ela fica diferente.

Após ouvir as justificativas apontadas por elas, procurei mostrar à Tatiana que as suas atitudes ameaçadoras deixaram as colegas apavoradas, o que forçou-as a buscar auxílio das mães, formando-se uma grande confusão. Por fim, o caso chegou ao conhecimento da equipe diretiva, fato que levou Tatiana a chegar atrasada para o início da aula. Diante de tudo isso, Tatiana demonstrou entender que a sua maneira de agir contribuiu para agravar a situação e ela declarou: - Eu acho ruim as brigas. Eu sei professora, mas são elas que ficam se exibindo e eu não gosto. Ao final do diálogo estabelecido entre todas nós, Tatiana parecia ter percebido que o seu sentimento de indignação e a vontade de ter para si a atenção das amigas havia servido para causar medo e afastamento. A tendência manifestada de mostrar-se autocentrada nos relacionamentos estabelecidos no grupo de colegas, parecia ceder espaço para manifestações mais participativas e de cooperação com os colegas. Em certos momentos era comum que se aproximasse dos colegas para mostrar alguma novidade que trouxera em sua mochila, fazendo trocas de material escolar, figurinhas ou combinando visita à casa das colegas para brincarem juntas. Pequenos eventos desse tipo, juntavam-se a outros que apresentavam pontos de aproximação permitindo uma nova compreensão na forma de agir de Tatiana.

Na época de organização dos dossiês do 3 º trimestre do ano letivo (mês de novembro) estávamos envolvidos com a elaboração do mesmo, sendo que não seria possível retardar esta tarefa devido ao tempo exíguo de que dispúnhamos. Infelizmente, naquela tarde de trabalho vários alunos estavam ausentes e, por isso, tive de ficar responsável pela organização das pastas destes alunos. A atividade consistia em anexar e numerar os trabalhos realizados nas diversas disciplinas do currículo escolar, seguindo a cronologia de tempo em que foram executados. Enquanto estava envolvida nesta atividade, João Paulo e Tatiana aproximaram-se e passaram a organizar alguns dossiês que estavam colocados nas classes enfileiradas, que eu havia disposto próximas a mim. Os dois passaram a se revezar na tarefa de organização destes dossiês e percebi que havia um ritmo de trabalho determinado pela ordem de numeração distribuída para cada trabalho escrito. A pressa justificava-se porque não queriam se atrasar. Tatiana dizia: – Vai rápido, João Paulo, tem mais esta folha aqui, ela é número 5 e a professora já tá no número 7. E João Paulo retrucava: - Não guria, eu já coloquei a 5. Esta não é daí!

 

A disponibilidade de Tatiana foi admirável, tendo em vista as dificuldades que já demonstrou em aceitar a maneira de ser dos outros e, também, de perceber que a sua forma de agir poderia provocar atitudes destoantes nos colegas, causando nela, por sua vez, sentimentos de indignação.

 

Em outra oportunidade, próxima ao final do ano, iniciávamos o registro de um passeio de confraternização realizado com outras turmas do 2º Ciclo. Para a realização desta tarefa, Tatiana perguntou-me se poderia sentar próxima à colega Betina que se encontrava sozinha no grupo. Indaguei-a se teria combinado com a colega a este respeito e ela respondeu-me que não. Pedi-lhe então que conversasse com Betina para decidirem se esta seria a melhor opção para ambas. De longe, pude observar que as duas alunas conversavam e gesticulavam sobre o assunto e Tatiana foi bastante insistente ao apresentar os seus argumentos. Aparentemente, ela era a parte mais interessada na parceria. Apesar disso, a colega também concordou com o pedido e as duas sentaram no mesmo grupo. A partir daí, criou-se um clima favorável entre elas, pois o trabalho transcorreu com tranqüilidade naquela tarde.

 

Com relação ao trabalho desenvolvido ao final do ano letivo o depoimento de Tatiana foi o seguinte:

 

– Meu nome é Tatiana, tenho 10 anos. Eu aprendi a ler emendado com a minha professora Lenise. E aprendi a escrever emendado e muitas coisas com a turma B16. E do meio ambiente. E a andar de perna de pau. E fazer amizade com os meus colegas. E só.

 

– Meu nome é Tatiana. Eu tenho 10 anos. Eu adoro brincar com os meus colegas. Eu gosto de desenhar e escrever no quadro.

 

 

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10 Considerações Finais (mas não definitivas)

Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos – gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas – que passarão a fazer parte dos poemas ...

(Mário Quintana, 1998, p.147)

 

Os aspectos principais discorridos neste capítulo procuram aprofundar a análise sobre as transformações não previstas ocorridas na turma de alunos selecionada para a pesquisa. A reflexão sobre o percurso realizado nas aprendizagens desses alunos, colocou em destaque uma proposta curricular interdisciplinar que se caracterizou no acolhimento dos alunos em situação de desvantagem, proporcionando condições para que pudessem percorrer sua trajetória de sujeitos aprendizes. As possíveis conexões entre a proposta dos ciclos de formação e a educação inclusiva privilegiaram a consecução de espaços para a produção de conhecimento, numa organização em que se procurou respeitar o ritmo, o tempo e as experiências de cada aluno. Além disso, ao destacar pontos de aproximação entre a abordagem sistêmica e as interações de sala de aula vivenciadas pelos alunos em situação de desvantagem na turma, procurou-se colocar em destaque esta perspectiva teórica para a ampliação da compreensão dos fenômenos analisados.

 

 

De como um projeto pedagógico e interdisciplinar é capaz de "transformar a escola por dentro"

O processo de transformação da turma que possuía a denominação de BP3 e que passou a chamar-se B16, representou um movimento que exigiu da escola repensar o alcance de sua organização e as possibilidades do trabalho pedagógico.

 

Quando principiou o ano letivo, os alunos pertencentes à turma BP3 demonstravam avanços importantes, em relação aos conhecimentos desenvolvidos na sala de aula. Além disso, era possível perceber o bom nível de entrosamento evidenciado nas interações entre eles. Em reunião pedagógica destinada ao planejamento e avaliação, manifestava minhas impressões a respeito do rumo que o trabalho em sala de aula estava assumindo e da perspectiva de um número significativo de alunos com condições para a progressão, em curto espaço de tempo. Diante de tais afirmações, manifestadas pelo coletivo de professores, a equipe diretiva propôs a progressão de toda a turma para o 1º ano do 2º ciclo. A possibilidade de o grupo efetivar um processo de progressão, em conjunto, levou a ações que priorizaram a nova organização da turma, procurando manter os mesmos professores, adaptando o horário escolar à sistemática de disciplinas e priorizando um planejamento curricular envolvendo a nova turma formada.

 

A progressão conjunta da turma de alunos reafirmou os pressupostos de uma escola voltada para a reorganização constante de seus princípios de ação, tendo como eixo do trabalho a preocupação em garantir melhores condições de aprendizagens aos alunos. A este respeito cumpre destacar o que aponta Lima:

 

Com a introdução dos ciclos, o aluno não passa de uma série a outra, mas terá sua escolaridade acontecendo por meio de ações que buscam a integração no processo educativo. É uma concepção em que as aprendizagens se realizam como processos situados no tempo possibilitando-se, assim ao aluno a realização dos processos de aprendizagem em toda sua extensão, sem as rupturas existentes no sistema tradicional. (LIMA, 2000, p.26)

 

Além dos alunos que compunham a extinta Turma BP3 , alguns advindos de outras turmas de progressão passaram a compor a nova Turma B16. Para o início das atividades no ano, houve a participação do Serviço de Orientação Educacional da Escola, realizando vivências entre os alunos falando sobre seus sentimentos e emoções, ao mesmo tempo, que permitiu a cada um conhecer um pouco mais sobre o outro.

 

Os desdobramentos decorrentes desta progressão conjunta apontavam mais responsabilidades para o coletivo de professores que reconhecia a singularidade do processo de transformação da turma. A passagem da modalidade de "Turma de Progressão" para "1º ano do 2º Ciclo" exigiu, sem dúvida, o cumprimento imediato de medidas, tais como: a nova organização do horário dos professores, a modificação do registro no sistema informatizado de registro dos alunos junto à secretaria e outras exigências formais. Entretanto, as maiores mudanças pretendidas diziam respeito às necessidades com relação ao processo de planejamento e avaliação do trabalho pedagógico que encaminhassem aos avanços pretendidos na aprendizagem desses alunos. A necessidade de lidar com o novo levou a potencializar os espaços para o planejamento dos professores. Houve encontros em que estiveram presentes a professora do Laboratório de Aprendizagem, além de educadoras especiais da Sala de Integração e Recursos que atendiam alunos da Turma B16, buscando garantir a interlocução entre as parcerias conquistadas.

 

Ao priorizar ações pedagógicas que encaminhassem à tomada de posição na perspectiva de um trabalho coletivo, era possível redimensionar a prática cotidiana voltada para as especificidades de cada aluno, sem perder de vista as exigências do currículo interdisciplinar.

 

 

O complexo temático é a "carta de navegação" que conduz o "barco" chamado de escola por ciclos de formação

A análise do processo de elaboração do complexo temático "Convivência", ocorrido no decorrer do ano letivo de 2000, permitiu a identificação de certas características que lhe conferiram pontos de aproximação com as questões de aprendizagem dos alunos da Turma B16. Para a elaboração do complexo temático, de acordo com o decálogo proposto pela assessoria da Secretaria Municipal de Educação, o grupo de professores utilizou o tempo disponível das reuniões pedagógicas na sua elaboração. Segundo os professores, o tempo destinado para esta tarefa envolveu a todos de forma intensa, levando à conclusão das atividades em breve espaço de tempo, o que permitiu que o complexo estivesse disponível para efetivação em sala de aula e nas demais atividades curriculares propostas pela escola. De posse do Plano Metodológico, o grupo de professores tinha a possibilidade de delinear ações pedagógicas coordenadas entre as diversas disciplinas do currículo escolar, quanto ao que poderia ser desenvolvido em aula. Além disso, havia o entendimento de que o planejamento poderia proporcionar oportunidades interessantes de ações encadeadas entre os três ciclos que se encaminhassem para a temática proposta pelo complexo temático.

 

Com relação ao 1º ano do 2º Ciclo, foi importante este momento de planejamento porque permitiu aos professores a elaboração conjunta de atividades para o período letivo de 2000, tendo como elemento destacado a questão da convivência. Especificamente, para a recém formada turma B16 era uma oportunidade valiosa que poderia proporcionar o reconhecimento do processo de transformação perante as demais turmas. Houve algumas alterações no coletivo de professores e, por isso, a Turma B16 passou a ter aulas com professores que também atuavam nas outras turmas do 1º ano do 2º ciclo. Os alunos entendiam que a progressão era uma responsabilidade que estaria a exigir de cada um maior determinação quanto ao processo de aprendizagem. A este respeito, destaco a fala de João Paulo:

 

– A gente tem que aprender a ser mais rápido porque os outros são assim... Tem que saber usar os cadernos certos e terminar de fazer tudo na aula, senão se dá mal!

A prioridade, durante o primeiro trimestre de atividades era garantir a organização do cotidiano de sala de aula, para isso a fala dos alunos era privilegiada em constantes momentos de avaliação. Normalmente, ao final do turno de trabalho procurava-se garantir a "roda final" para que os alunos pudessem manifestar suas impressões sobre o andamento das atividades. Existia, ainda um certo acanhamento por parte dos alunos da Turma B16, como se sentissem inferiorizados em relação aos demais colegas, pela sua condição de "ex-turma de progressão". Certo dia, Carlos Antonio retornara do recreio muito irritado por causa de uma briga com um menino de outra turma do 1º ano do 2º ciclo. O motivo da briga teriam sido ofensas que este aluno fizera a respeito de Carlos Antonio e de sua condição de aluno que freqüentava turma de progressão. Ele declarou ao grupo:

 

– Ah, professora eu briguei porque ele disse que na nossa turma só tinha "louquinho", que a B16 era turma só de "louquinho"...

 

A partir de declarações deste tipo, procurei manter o foco de minha observação direcionado para manifestações semelhantes, que pudessem vir a ocorrer. Ao apresentar o tema para discussão com os alunos, alguns relataram ter ouvido afirmações semelhantes, mas que pouco se importaram com tais provocações. Já para outros, a afirmação soava como um afronta pessoal levando a discussões verbais e confrontos violentos envolvendo agressões físicas. Diante da importância que esta situação representava em termos de "convivência" para os alunos da turma, apresentei o assunto para apreciação em reunião pedagógica. A supervisora acolheu o pedido e disse que haveria um turno específico de trabalho para elaboração do plano metodológico para o próximo período letivo de três meses. Segundo ela, nesta oportunidade seria possível planejar o trabalho interdisciplinar com o tempo suficiente para redimensionar o ‘problema’ levantado, junto às demais turmas do ano-ciclo. O turno de trabalho destinado para este fim, contou com a presença de todos os professores que trabalhavam com as turmas B11, B12, B13, B14, B15 e B16. Foi uma iniciativa inédita da equipe diretiva e pedagógica que, apesar de o calendário escolar estar em andamento, entendia a necessidade do planejamento mais aprofundado em condições de tempo razoáveis, permitindo o aprofundamento e a discussão de questões pertinentes às turmas na relação com o complexo temático.

 

As atividades de planejamento foram pensadas pelo coletivo de professores, responsáveis pelas disciplinas das turmas e procuraram enfatizar momentos em que houvesse a integração das turmas no tema "convivência". O planejamento coletivo resultou no entrelaçamento de duas áreas curriculares, sendo que o estudo de Porto Alegre, desenvolvido na disciplina de Estudos Sociais e a questão de preservação do ambiente natural, a ser aprofundada na disciplina de Ciências seriam o eixo do trabalho nas turmas. A partir da idéia central envolvendo o estudo de Porto Alegre e a preservação de seus recursos naturais, foi desenvolvido o trabalho sobre convivência, evitando a predominância de um tema sobre o outro. O que se buscava era o entrelaçamento de diferentes enfoques que convergissem para os princípios defendidos no complexo temático. Com relação às atividades a serem desenvolvidas buscou-se priorizar momentos que envolvessem o desenvolvimento conjunto entre as turmas com vistas à integração.

 

Dentre as atividades desenvolvidas, cumpre destacar o trabalho proposto na escola sobre o tema "convivência". O objetivo era de desenvolver atividades em todos os anos-ciclos sobre o tema, privilegiando a integração entre as turmas. No que se refere à proposta planejada para o 1º ano do 2º ciclo, o coletivo de professores organizou, para o primeiro momento, a apresentação em formas de lâminas no retroprojetor de trechos do livro "O que fazer – falando de Convivência". Na seqüência, os alunos foram organizados em pequenos grupos para discutirem os pontos abordados durante a exposição nas lâminas. Cada um destes minigrupos elaborou um painel, em forma de desenhos, a partir de trechos do livro, que serviriam como elementos de análise da realidade de sala de aula. O objetivo era apontar possíveis encaminhamentos para questões sobre convivência. A proposta de trabalho prosseguiu em outro momento na sala de aula com a turma B16. Os encaminhamentos surgidos, na etapa anterior, serviram para a elaboração de princípios de convivência. A partir do título "Convivendo Melhor" e de posse do material impresso com trechos do livro, anteriormente utilizado, os alunos puderam elaborar o que entendiam contribuir para a convivência entre eles. A este respeito, apresento um trecho do livro destacado para ilustrar a atividade:

 

E os ouvidos dos outros como ficam? Toda vez que você perde a paciência, fala aos berros, explode, joga para o lado o que tem na mão e grita palavrões sem mais nem menos. Não seria o caso de acalmar esses modos escandalosos de agir? (IACOCCA, 1999, p. 33)

 

A partir de pequenas provocações que as afirmações do livro traziam foi possível suscitar nos alunos o seu posicionamento diante de situações que poderiam acontecer com cada um deles.

 

A atividade teve novo desdobramento em outra oportunidade, quando utilizamos a sala de informática para que os alunos pudessem expressar de forma escrita, o que foi chamado de "Falando de Convivência – dicas dos alunos". O trabalho envolveu os alunos de forma intensa e cada dupla tinha como tarefa digitar as suas idéias, de acordo com os pontos, até então abordados. O trabalho foi impresso e anexado ao dossiê dos alunos. Destaco as conclusões de Pedro e Jorge Luís, que as escreveram conjuntamente:

 

FALANDO DE CONVIVENCIA

QUANTA COISA A GENTE TEM QUE SE LEMBRAR MAS VALE APENA.

AS VEZES A GENTE É DEDO DURO MAS A GENTE NÃO PODE SER SENPRE.

NÓS NÃO ACHAMO LEGAL APONTAR O DEDO PARA AS PESSOAS.

OS ALUNOS NÃO DEVEM ESQUECER O TTEMA CASA

Na seqüência das atividades os alunos puderam, ainda, confeccionar cartões para trocar com outros, assistir a vídeos e discutir alternativas para tornar o recreio mais interessante. Este trabalho atingiu notoriedade a ponto de ser publicado em foto de primeira página no Jornal Zero Hora(anexo n.º 5), o que permitiu novas reflexões junto aos alunos, tornando as discussões de sala de aula objeto de análise junto à comunidade escolar, de forma mais abrangente.

 

Entendo que este processo manteve-se intimamente relacionado com as questões propostas, quando da organização do complexo temático e serviram como eixo vertebrador do trabalho pedagógico desenvolvido. A busca pelo estabelecimento de uma relação de reciprocidade, que levasse ao diálogo, proporcionando trocas generalizadas de informações e críticas, contribuiu para que os alunos pudessem situar-se melhor em relação a sua condição de aprendizes e, também, enquanto pessoas em desenvolvimento. Os conhecimentos trabalhados adquiriram significado na vida presente porque foram utilizados em situações da vida prática, permitindo a circulação dos saberes entre as várias áreas do currículo da escola.

 

A sala de aula é o palco em que é apresentada a prática educativa de todos os dias, em que cada espetáculo é totalmente distinto do anterior porque faz e se refaz a cada interação

 

A partir dos pressupostos teóricos que fundamentam o pensamento sistêmico, observa-se a valorização de uma compreensão contextual e processual dos fenômenos, o que leva a compreender que as propriedades sistêmicas partem do todo e surgem das relações de organização das partes. A compreensão desta acepção permite estabelecer aproximações com os aspectos que compõe uma visão interdisciplinar, como estava delineada na organização do ensino por ciclos de formação na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, porque há uma busca contínua de múltiplas conexões que pode ser exemplificada pelas ações já descritas. A articulação de ações que contemplavam as diferentes áreas disciplinares, partindo de um núcleo temático comum, mostrou-se propulsora de aprendizagens que são confirmadas nas descrições de percursos dos sujeitos envolvidos.

 

A ciência cognitiva, desde as primeiras publicações, destacava o estudo da mente humana que passou a ser encarada como o ponto de junção de uma grande variedade de influências estruturadoras, dimensionada para além daquela oferecida pelo estudo de organismos individuais, a partir das contribuições de vários campos da ciência para explicar o conhecimento. Os estudos interdisciplinares tornaram-se imprescindíveis para a análise aprofundada de elementos relacionados, tais como: discursos, subjetividades, posicionamentos e fenômenos psicológicos que eram aprofundados nas discussões e levavam à ampliação do círculo de pesquisadores envolvidos em estudos afins.

 

Da mesma forma, a partir da elaboração do complexo temático a interdisciplinaridade assumia espaço na escola por ciclos de formação exigindo a construção coletiva por parte dos educadores para a sua elaboração e execução. O estudo de vários conceitos ao mesmo tempo em que se buscava a eliminação da dicotomia entre teoria e prática, agir e refletir, trabalho manual e intelectual colocava em destaque a necessidade da pesquisa e da reelaboração dos conhecimentos. A busca de um conhecimento que adquirisse significado, como elemento propiciador de novas relações com as aprendizagens dos alunos, foi colocado na condição de prioridade, encaminhando-se para a consolidação de uma proposta pedagógica capaz de acolher também os alunos em situação de desvantagem.

 

Há um outro aspecto importante para ser confrontado na relação entre o pensamento sistêmico e a dimensão interdisciplinar, efetivada na proposta dos ciclos de formação. Quando da sistematização dos elementos constitutivos para organização curricular do complexo temático, os princípios defendidos pelo educador russo Pistrak foram cruciais para a definição dos referenciais teóricos a serem seguidos. Havia dois traços distintivos na proposta de Pistrak que foram balizadores da nova proposta político-pedagógica que estava sendo implementada: as relações com a realidade atual e a auto-organização dos alunos. Para Pistrak (1981) os alunos deveriam assumir a responsabilidade por todos os setores da escola, desde a compra de materiais de limpeza e higiene até o gerenciamento e a fiscalização no uso dos recursos financeiros. A escola assumiria um papel central na vida dos alunos, proporcionando a vivência de oportunidades ricas com o conhecimento e a cultura, no meio em que o aluno estava inserido. Na abordagem sistêmica, por sua vez, a auto-organização é encarada como a capacidade de o ser humano realizar reflexões a partir de si mesmo, tornando-se auto-consciente, o que na perspectiva de Maturana (1995) significa "tornar-se humano", pois a consciência e a linguagem permitem a quem opera nelas descrever-se a si mesmo e as suas circunstâncias.

 

A organização da vida no padrão de rede (Capra, 1994), em que a função de cada componente é ajudar a produzir e transformar outros componentes está claramente explicitada na teoria autopoiética de Maturana e Varela e coloca o sistema nervoso como um sistema auto-organizador em que os fenômenos básicos de compreensão se dão num processo recursivo mutuamente interligado num círculo inseparável.

 

Na análise do cotidiano do presente trabalho, no ambiente de sala de aula o conhecimento desenvolvido era aquele que partia do próprio sujeito, onde as ações eram desencadeadas na interação entre seus componentes, que registravam suas experiências, impressões e geravam um movimento recursivo. Os educadores, por sua vez, procuravam promover o cruzamento dos diversos saberes, respeitando a fragmentação necessária no diálogo "inteligente" com o mundo. A relação de reciprocidade levava a trocas generalizadas de informações e críticas, contribuindo para a reorganização do contexto institucional e para a produção de novos conhecimentos. A este respeito pode-se apresentar uma das reflexões de Maturana sobre o significado de "ser humano":

 

Os seres humanos, ainda que vivamos uma cultura de manipulação, somos biologicamente membros de uma história em que o central é a biologia do amor e a colaboração e não a manipulação. Segundo vivamos ou não esta verdade no presente cotidiano, vamos ter uma vida em que nos sentimos bem ou em que nos sentimos mal. E nossos filhos irão configurar um mundo exatamente como aquele em que tiverem vivido. (MATURANA, H., 1993, p.70)

 

Portanto, repensar a prática educativa pretendida envolve, basicamente, os sujeitos integrantes deste processo, em que a "participação das emoções" (Maturana, 1998) torna-se o ponto fundamental e as interações ocorridas mostrarão o resultado das transformações destes sujeitos com o meio, ou seja, as experiências vivenciadas repercutem diretamente no que somos. O que fizemos hoje, jamais será idêntico ao que virá depois, estamos todos indefinidamente inseridos num processo constante de transformações que depende da ação dos sujeitos envolvidos e que precisa ser constantemente revisto, ampliado e modificado, de acordo com as necessidades que surgem no cotidiano. A escola é um dos espaços que pode permitir a efetivação deste processo e terá condições para tanto, enquanto mantiver sua atenção direcionada a esses propósitos.

 

Os canais de expressão manifestados pelos alunos em situação de desvantagem são janelas para novos horizontes da ação pedagógica

Na turma de alunos, foi possível perceber distintas manifestações que repercutiram de forma intensa no espaço escolar. Há de se destacar que todas as interações estabelecidas com esses alunos, mantiveram-se vinculadas ao ambiente de sala de aula e demais vivências oportunizadas no ambiente escolar.

 

O aluno João Paulo mostrou-se um participante enriquecedor para a organização das atividades escolares, pelo seu espírito empreendedor, em iniciativas de organização do espaço escolar. Era notável o quanto estava sintonizado com os movimentos do grupo e como conseguia manifestar na sua fala, o que percebia. Em certo momento, expressou a vontade de modificar a organização dos grupos de trabalho para "diminuir a conversa", em outro momento, afirmou querer fazer um cartaz mostrando o alfabeto em letra cursiva para todos quando estivessem escrevendo. Houve, ainda, uma situação em que disse que gostaria de ir até a sala de computação para aprender mais sobre Porto Alegre, via Internet. João Paulo apresentava sugestões sobre passeios, lugares a visitar e, também, relatava acontecimentos pessoais que enriqueciam as discussões de sala de aula, apontando possíveis direcionamentos para o desenvolvimento do planejamento interdisciplinar que eram aproveitados no planejamento do coletivo de professores.

 

Entretanto, estas características tão marcantes e potencializadoras de novas ações para a turma de alunos contrastavam com grandes dificuldades para a leitura e escrita. Foram muitos os momentos que João Paulo ficou paralisado diante da folha de papel sem conseguir escrever nenhuma palavra, de sua própria autoria. Para ele era mais seguro copiar do quadro verde, do caderno do colega ou dos livros. Quando questionado, ele sempre repetia: - Eu sou burro! Eu não sei ler e escrever! Apesar do trabalho de apoio prestado pelo Laboratório de Aprendizagem da Escola e das muitas conversas dos professores sobre o seu inegável potencial para a alfabetização, além das inúmeras situações no grupo de colegas, em que adquiria notoriedade pelo seu espírito empreendedor, as dificuldades persistiam. As primeiras modificações na sua postura, em relação ao seu processo de alfabetização, começaram a despontar nas interações com determinados colegas, em especial, com Carlos Antônio que era seu colega e amigo de longa data. O estreitamento na convivência entre os dois foi propiciado, a partir do direcionamento dado no trabalho pedagógico, a ações que estabelecessem um processo de ajuda mútua na realização das tarefas sobre leitura e escrita.

 

Apesar das evidências que apontavam para avanços importantes na forma de relacionar-se com os colegas, João Paulo continuou apresentando limitações em relação ao seu processo de alfabetização necessitando de apoio intenso de professores e colegas para concluir atividades de leitura e interpretação escrita. Parecia faltar-lhe, ainda, maior capacidade de resolver as tarefas de forma independente, sem depender do auxílio constante de outras pessoas.

 

Carlos Antônio destacou-se na realização de ações que visavam a organização do grupo, em atividades do cotidiano escolar. A proposta curricular da escola priorizava a elaboração dos princípios de convivência, o que despontava como aspecto importante para Carlos Antônio. Um traço marcante em sua conduta era a de exigir que o descumprimento de qualquer uma das combinações da turma fosse retomada, por quem a desrespeitou. Nesses momentos, costumávamos retomar, no grande grupo, o assunto causador de polêmica, procurando alternativas relacionadas ao que propunham as "regras da turma". Certas combinações precisavam ser retomadas inúmeras vezes e Carlos Antônio conseguia participar de forma decisiva, apresentando as suas reflexões sobre o assunto em questão. Dessa forma, demonstrava, estar muito envolvido com os assuntos de sala de aula, mostrando-se cooperativo e solidário com os colegas.

 

Apesar deste envolvimento com as questões da turma, o aluno ainda apresentava algumas limitações para reconhecer-se como alguém capaz de construir conhecimento, utilizando o seu potencial criativo compatível com a forma intensa que estava ligado com o ambiente de sala de aula. Nesse sentido, os momentos que estivemos na sala de computação foram de grande significado para ele. A possibilidade de escrever cartas via e-mail expressando as suas emoções repercutiram de modo decisivo na sua forma de agir, pois levaram-no a adquirir maior confiança em si mesmo, ao mostrar aos colegas que era capaz de escrever e ser compreendido. Além disso, o uso do teclado substituía o uso da letra manuscrita, que Carlos Antonio considerava "muito feia". Nas tarefas de sala de aula, costumava apagar várias vezes o que fazia e por fim desistia de concluí-las, o que deixava-o frustrado. A busca de alternativas para a realização das tarefas escolares envolvia Carlos Antônio em novos desafios, levando-o a perceber que era possível utilizar recursos diferenciados para expressar o que sentia e gostava de fazer. A tendência para censurar-se, menosprezando suas qualidades deixava de manifestar-se de forma intensa.

 

A respeito da aluna Maria Eduarda, percebeu-se que a mesma apresentou avanços no relacionamento com os colegas e professores, desde o início do atendimento na SIR. Os encontros ocorridos na Sala de Integração e Recursos permitiram o estabelecimento de um canal valioso para a expressão de suas emoções, mostrando o que era capaz de construir, relacionando a sua vontade de criar algo com a possibilidade de viabilizar este produto em atos concretos como foi a elaboração da "casinha cor de rosa".

Na forma de agir de Maria Eduarda, destacou-se o uso que fez das palavras para dizer o que a perturbava. Anteriormente, a sua tendência era a de manter-se calada e resignada, postura que sofreu mudança através da ampliação do uso das palavras para esclarecer o que pensava, justificando a maneira como agiu e a maneira como se sentia diante dos acontecimentos. Estas mudanças ocorridas durante o ano caracterizaram a linguagem que não depende, apenas, de um diálogo explícito de seres falantes em linguagem, mas que é o resultado das interações que estes sujeitos estabelecem por meio da recursão das coordenações consensuais de conduta. Dessa forma, Maria Eduarda conseguiu efetivar, através da linguagem, os seus sentimentos e emoções, fator que influiu, também, em suas aprendizagens pois começou a demonstrar mais interesse pela leitura e escrita, tentando realizar as atividades de forma independente e não como mera "copista", atitude que, até então, caracterizava a sua postura em relação ao aprendizado escolar.

 

O aluno Pedro, por sua vez, tinha a tendência de isolar-se do convívio com os colegas, apresentando atitudes de rejeição para participar de atividades cotidianas, tais como elaboração de tarefas em grupo, ou mesmo, para expor o seu pensamento aos colegas sobre temas em estudo. A partir da interação no grupo de colegas e professoras, em que os acontecimentos sucediam-se na forma de avanços importantes nos relacionamentos interpessoais, Pedro conseguia utilizar os seus conhecimentos relacionando-os aos assuntos de sala de aula. Inicialmente, o destaque que adquiriu perante os colegas pela capacidade de leitura e interpretação manifestadas, permitiu novos avanços que se sucederam com o passar dos encontros de sala de aula. Assim, a tendência ao isolamento reduziu gradativamente, com o aumento das manifestações espontâneas para dizer o que sabia, o que conhecia, o que descobriu ao ler o jornal, ou o que viu na televisão ou nos livros da biblioteca, por exemplo. A medida que demonstrava tais avanços, foi sendo quebrada a "barreira do isolamento", ampliando-se a manifestação de outras formas de expressão nas interações com o grupo de colegas. Dessa forma, cantar, dançar, gargalhar passaram a ocorrer com freqüência, propiciando novos contatos com os colegas e as questões do conhecimento ficaram cada vez mais evidentes.

 

Com relação a aluna Tatiana, merecem destaque as mudanças ocorridas na sua forma de agir na interação com os colegas. Logo ao início do ano letivo, a aluna era desconhecida da maioria dos colegas e permaneceu, assim, por um certo período de tempo, pois a sua atitude costumeira era de isolar-se dos demais, permanecendo envolvida com seus pertences pessoais durante as aulas. A medida que o tempo foi passando, a convivência diária levou-a a estar mais próxima dos colegas e criaram-se mais oportunidades para o conhecimento mútuo. Nessas situações, Tatiana começava a exigir atenção dos colegas e professores, evidenciando características próprias do seu modo de ser e agir. Nesses momentos, transparecia uma certa intransigência por parte da aluna, ao lidar com os colegas, pois tinha dificuldade para aceitar o ponto de vista dos outros. As mudanças mais significativas foram aquelas que exigiram a reflexão sobre suas atitudes, em que precisou dizer porque tinha agido de tal maneira ou porque demonstrava estar tão furiosa ou ressentida diante de determinado acontecimento. Ao utilizar a linguagem conseguiu evidências de maior capacidade de compreensão a respeito dos acontecimentos ocorridos entre ela e os demais colegas.

 

De tudo o que aqui foi anunciado, entendo que a busca por melhores condições para a aprendizagem de alunos em situação de desvantagem tem encontrado pontos de apoio em uma proposta curricular interdisciplinar, que procura alternativas inovadoras balizadas por uma prática de sala de aula vinculada a um projeto político-pedagógico em que cada aluno é priorizado em sua singularidade. Observa-se uma busca de ampliação dos níveis de participação dos sujeitos, permitindo que a trajetória de aprendizagem destes alunos encontre opções para a sua realização na medida em que as interações de sala de aula são redimensionadas, sem ficarem restritas ao pequeno grupo de alunos. Estas contam com relações baseadas no uso da linguagem e da participação de todos nos vários espaços e oportunidades criadas no cotidiano escolar.

 

Dentre os aspectos que levaram à consolidação da proposta curricular interdisciplinar, estão alinhados fatores ligados à gestão do imprevisto, ou seja, a capacidade de incorporar as transformações do cotidiano apontadas a partir da postura dos alunos. Estes elementos levavam à "invenção de alternativas" que eram delineadas no planejamento dos professores que constantemente buscavam rediscutir a atuação dos alunos de acordo com os desafios para a aprendizagem propostos em relação ao trabalho da sala de aula e a proposta curricular.

 

 

 

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89 SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote II. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 496 p.

90 SCHOLZE, Lia. IX Seminário Nacional de Educação: uma cidade educadora para uma cultura solidária. Conferências maio de 2001. Porto Alegre: SMED, maio de 2001.23 p.

91 SEVERINO, A . J. O uno e o múltiplo: o sentido antropológico do interdisciplinar In: JANTSCH, Ari P.; BIANCHETTI, Lucídio (Org.). Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p. 159-175.

92 SILVA, Luiz Heron da.(Org.) Congresso Constituinte: eixos temáticos. Cadernos Pedagógicos SMED, Porto Alegre, n.4, 1995a.

93 _____. Escola Cidadã: construindo sua identidade. Paixão de Aprender, Porto Alegre, 1999b.

94 SIMON, Cátia C. A Concepção de Aprendizagem na Escola Cidadã. Paixão de Aprender, Porto Alegre, n.11, p. 42-49, 1999.

95 _____. A Construção da Cidadania na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis de; SANTOS, Edmilson S. dos (Org.) Novos Mapas Culturais: novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. p. 237-242.

96 _____.; VIERO, Emilia.(Org.) Ciclos de Formação em debate. Porto Alegre: Prefeitura/SMED. 2000. 20 p.

 

97 SOARES, Paulo Renato C. ; ROSSETO, Rosane Paim II Congresso Municipal de Educação: teses e diretrizes. Cadernos Pedagógicos SMED, Porto Alegre, n.21, 66 p, 2000.

98 STAINBACK, Susan ; STAINBACK, William. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 330 p.

99 TITO, Eneida M. Ramos de Macedo. Fonte Sócio-Psicopedagógica: uma escola em construção. Cadernos Pedagógicos SMED, Porto Alegre, n.12, p. 24-27, jul. 1998.

100 TORRES, Rosa María. Educação para Todos: a tarefa por fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.104 p.

101 WITHMAN, Walt. Folhas das Folhas da Relva. São Paulo: Brasiliense, 1983. 141 p.

102 XAVIER, Maria Luiza M. Planejamento do ensino na escolarização inicial: globalização, interdisciplinaridade e integração curricular. In: DALLA ZEN, Maria Isabel H.;XAVIER, Maria Luiza M. (Org.) Planejamento em destaque: análises menos convencionais. Porto Alegre: Mediação, 2000. p. 5-29. (Cadernos de Educação Básica, 5)

 

 

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ANEXOS

 

 

Anexo 1

Transparência para retroprojetor utilizada em reunião de professores da Escola Monte Cristo para a discussão que encaminharia à definição sobre o tema central do novo complexo temático.

 

 

 

Anexo 2

Princípios por Área do Conhecimento e a teia temática do novo complexo temático em elaboração na Escola Monte Cristo

 

 

 

Anexo 3

 

Plano Metodológico elaborado pelo coletivo de professores que atuavam nas turmas de 1º ano do 2º ciclo referente ao período de maio, junho e julho de 2000.

 

 

 

Anexo 4

Plano Metodológico elaborado pelo coletivo de professores que atuavam nas turmas de 1º ano do 2º ciclo referente ao período de agosto, setembro e outubro de 2000.

 

 

 

 

Anexo 5

 

Reportagem apresentada no Jornal Zero Hora de 18 de outubro de 2000, em que as atividades desenvolvidas a partir do complexo temático "Convivência", nas turmas de 1º ano do 2º Ciclo, mereceram destaque em notícia de capa.

 

 

 

 

Anexo 6

 

Exemplo de um trabalho escrito realizado com os alunos da Turma B16, em que o ambiente informatizado foi utilizado como recurso desencadeador da linguagem escrita no contexto do tema em estudo "Convivência".

 

 

 

 

Anexo 7

 

Convite confeccionado pela aluna Maria Eduarda, quando em atendimento na Sala de Integração e Recursos, para que os seus colegas viessem a conhecer a sua casinha cor de rosa.

 

 

 

 

Anexo 8

 

Registro escrito do aluno João Paulo sobre a questão para reflexão proposta ao final do ano.

"De tudo o que eu aprendi como aluno da Turma B16, o que realmente valeu a pena foi ..."

 

 

 

 

Anexo 9

 

Registro escrito do aluno Carlos Antônio sobre a questão para reflexão proposta ao final do ano.

"De tudo o que eu aprendi como aluno da Turma B16, o que realmente valeu a pena foi ..."

 

 

 

Anexo 10

 

Registro escrito da aluna Maria Eduarda sobre a questão para reflexão proposta ao final do ano.

"De tudo o que eu aprendi como aluna da Turma B16, o que realmente valeu a pena foi ..."

 

 

 

Anexo 11

 

Registro escrito do aluno Pedro sobre a questão para reflexão proposta ao final do ano.

"De tudo o que eu aprendi como aluno da Turma B16, o que realmente valeu a pena foi ..."

 

 

 

Anexo 12

 

Registro escrito da aluna Tatiana sobre a questão para reflexão proposta ao final do ano.

"De tudo o que eu aprendi como aluna da Turma B16, o que realmente valeu a pena foi ..."


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