POLÊMICA, POLÍTICA E PROBLEMATIZAÇÕES.

Michel FOUCAULT

 


(Polémique, politique et problématisations. In FOUCAULT, M. Dits et Écrits, vol. IV, Paris, Gallimard, 1997, pp. 591-598. Originalmente publicado como: Polemics, Politics and Problematizations. Entrevista a P. Rabinow, maio de 1984. in RABINOW (org). The Foucault Reader, N. York, Pantheon Books, 1984, pp. 381-390)

 

Por que se mantém longe da polêmica?

Gosto de discutir e procuro responder às perguntas que me são feitas. Não gosto, é verdade, de participar das polêmicas. Se abro um livro em que o autor taxa um adversário de "esquerdismo infantil", fecho-o imediatamente. Não compartilho tais modos de agir; não pertenço ao mundo daqueles que recorrem a isso. Insisto nesta diferença como a algo essencial: está em jogo uma moral, a que diz respeito à busca da verdade e à relação com o outro.

No jogo sério das perguntas e das respostas, no trabalho de esclarecimento recíproco, os direitos de cada um são, de alguma forma, imanentes à discussão. Dependem apenas da situação do diálogo. Quem pergunta limita-se a exercer um direito seu: o de não estar convencido, de colher uma contradição, ter necessidade de informação ulterior, fazer valer postulados diversos, sublinhar um defeito na argumentação. Quanto a quem responde, nem sequer ele tem um direito que excede à própria discussão; está ligado, pela lógica do seu discurso ao que disse antes e, pela aceitação do diálogo, à pergunta do outro. Perguntas e respostas fazem de um jogo - jogo agradável e ao mesmo tempo difícil - em que cada parte procura usar apenas os direitos que lhe são dados pelo outro e pela forma consentida do diálogo.

O polemico, pelo contrário, procede atrelado a privilégios que detém antecipadamente e que não aceita nunca de pôr em discussão. Possui, por princípios, os direitos que o autorizam à guerra e que fazem desta luta uma empresa justa; diante dele não está um companheiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que errou, que é prejudicial e cuja existência constitui uma ameaça. Para ele, portanto, o jogo não consiste em reconhecer o outro como sujeito que tem direito à palavra, mas em anulá-lo como interlocutor de qualquer possível diálogo, e o seu objetivo final não será o de aproximar-se quanto possível de uma verdade difícil, mas o de fazer triunfar a justa causa de que se proclama, desde o inicio, o porta-voz. O polemico apoia-se em legitimidade da qual o seu adversário é, por definição, excluído.

Talvez um dia será necessário escrever a longa historia da polêmica como figura parasitária da discussão e o obstáculo à busca da verdade. Muito esquematicamente, sou da opinião de que, hoje, se poderia reconhecer a presença de três modelos: o modelo religioso, o modelo judiciário e o modelo político. Conforme na heresiologia, a polêmica tem em vista determinar o ponto intocável do dogma, o princípio fundamental e necessário que o adversário menosprezou, ignorou ou transgrediu; e, nesta negligencia, ela denuncia a culpa moral; na raiz do erro, descobre a paixão, o desejo, o interesse, uma série de fraquezas e de predileções inconfessáveis que o tornam culpado. Conforme ocorre na prática judiciária, a polemica não oferece a possibilidade de uma discussão paritária; ela instrui um processo; não tem a ver com um interlocutor, mas com uma pessoa suspeita; reúne as provas da sua culpa e, ao designar a infração que cometeu, pronuncia e impõe a condenação. De qualquer modo, não se está no campo de uma investigação conduzida conjuntamente; o polemico diz a verdade sob forma de juízo e em base à autoridade que sozinho conferiu a si mesmo. Mas atualmente é o modelo político que é mais poderoso. A polemica define alianças, recruta, portador de interesses opostos, contra quem urge lutar até que, batido, só lhe resta submeter-se ou desaparecer.

Claro que, na polemica, a reativação destas praticas políticas, judiciárias ou religiosas nada mais são que teatro. Gesticula-se: afinal de contas, anátemas, excomunhões, condenações, batalhas, vitórias e derrotas são apenas modos de dizer. Contudo, na ordem do discurso, há também modos de agir não isentos de conseqüências. Há efeitos de esterilização: por acaso já se viu que, de alguma polemica, tenha nascido uma idéia nova? Não poderia ser diferente, pois os interlocutores não são incitados a avançar, a arriscar-se a si mesmos cada vez mais no que dizem, mas a insistir sem cessar no bom direito que reivindicam, na defesa da própria legitimidade e na afirmação da própria inocência. Há um aspecto mais grave: nesta comédia, cultiva-se a guerra, a batalha, os aniquilamentos e os rendimentos sem condições; faz-se passar tudo o que for possível através do próprio instinto de morte. É muito perigoso acreditar que o acesso à verdade possa passar por estradas deste tipo e legitimar assim, mesmo que fosse de forma puramente simbólica, as reais práticas políticas que daí poderiam derivar. Imaginemos por um instante que, numa polemica, um dos dois adversários receba, por um golpe de varinha mágica, o poder de exercer sobre o outro todo os poder que desejar. É inútil, aliás, imaginá-lo: basta verificar como, há não muito, se desenrolaram os debates sobre a lingüística ou sobre a genética na URSS. Tratava-se de desvios aberrantes em relação ao que devia ser uma discussão apropriada? De modo algum, tratava-se de conseqüências, de tamanho real, de uma atitude polêmica, cujos efeitos ficam geralmente suspensos.

A partir das suas obras, o senhor foi visto como idealista, niilista, "nouveau philosophe" anti-marxista, novo conservador... Onde se situa precisamente?

De fato, creio que fui colocado, separada e às vezes simultaneamente, na maior parte das casas do tabuleiro político: anárquico, de esquerda, marxista ruidoso ou oculto, niilista, anti-marxista explicito ou disfarçado, tecnocrata ao serviço do golismo, neoliberal... Um professor norte-americano lamentava que viesse como convidado aos Estados Unidos um cripto-marxista como eu e, ao mesmo tempo, era denunciado pela imprensa por si mesma; todas juntas, pelo contrário, tem sentido. E devo reconhecer que tal significado me cai bastante bem.

É verdade que não gosto de identificar-me e que me diverte a diversidade dos julgamentos e das classificações de que fui alvo. Algo me diz que, após tantos esforços em direções tão diferentes, se poderia encontrar finalmente um lugar mais ou menos aproximativo para; mas já que, evidentemente, não posso duvidar da competência dos que se confundem em julgamentos divergentes, e já que não é possível pôr em discussão a distração deles ou o partido deles ou o partido que tornaram importa que eu assuma, diante da incapacidade deles em situar, algo que depende de mim.

Algo que, em síntese, diz respeito provavelmente ao meu modo de me aproximar das questões da política. É verdade que minha atitude não cabe naquela forma de crítica que, sob o pretexto de um exame metódico, recusa todas as soluções possíveis, exceto uma, que seria aquela boa. Cabe, no entanto, na ordem na "problematização": da elaboração de um âmbito de fatos, de práticas e de pensamentos que, segundo minha opinião, põem problemas à política. Não penso, por exemplo, que exista uma "política" que possa deter a solução justa e definitiva com respeito à loucura ou à doença mental. Mas penso que na loucura, na alienação, nos distúrbios do comportamento haja motivos para interrogar a política: a tais questões a política deve responder, mas nunca responderá completamente. O mesmo vale para o crime e a punição: naturalmente seria falso imaginar que a política nada tenha a ver com a prevenção do crime e com seu castigo, portanto, nada a ver com determinado número de elementos que modificam a sua forma, o seu sentido, a sua freqüência, mas seria igualmente falso pensar que exista fórmula política capaz de resolver e de fechar a questão do crime. O mesmo vale para a sexualidade: ela não existe sem a relação com as estruturas, das exigências, das leis e das regulamentações políticas que tem para ela importância capital. Contudo, não se pode esperar que as formas através das quais a sexualidade deixará de ser problema venham da política.

Trata-se, por conseguinte, de pensar as relações que existem entre estas diversas experiências e a política; o que não quer dizer que se buscará na política o princípio constitutivo destas experiências ou a solução que regulará definitivamente o seu destino. Importa elaborar os problemas que experiências deste tipo põem à política. Mas importa igualmente estabelecer o que significa "por um problema" à política. R. Rorty observa que, nestas análises, não me remeto a nenhum "nós" - a nenhum destes "nós", de que o consenso, os valores, a tradição, constituem o campo de um pensamento e definem as condições em que isso possa ser legitimado. O problema, porem, está exatamente em saber se efetivamente convém situar-se no interior de um "nós" para fazer valer os princípios que se reconhecem e os valores que se aceitam; ou melhor, se não é necessário que, ao elaborarmos a questão, tornemos possível à formação futura de um "nós". Não me parece que o "nós" deva preceder a questão; ele pode ser apenas o resultado - e resultado necessariamente provisório - da questão, tal como se põe nos novos termos em que vem formulado. Por exemplo, não estou certo de que, no momento de escrever a Historia da Loucura houvesse um "nós" pré-existente e acolhedor a que me pudesse ter referido para escrever o meu livro fosse a expressão espontânea. Entre Laing, Cooper, Basaglia e eu não havia nada em comum, nenhuma ligação. Mas para os que nos tinham lido, e também para alguns de nós, foi posto o problema de saber se teria sido possível constituir um "nós" a partir do trabalho feito e capaz de formar uma comunidade de ação.

Nunca procurei analisar nada do ponto de vista da política; sempre procurei questionar a política naquilo que tinha a dizer sobre os problemas com que se havia confrontado. Questiono-a sobre as posições que assume e sobre os motivos que oferece; não lhe peço que estabeleça a teoria do que faço. Não sou nem adversário, nem defensor no marxismo; interrogo-o sobre o que tem a dizer a respeito de experiências que lhe apresentam interrogações.

Acerca dos acontecimentos de maio de 68, me parece que cabem em outro campo de problemas. Naquela época não estava na França; voltei apenas alguns meses mais tarde. Pareceu-me que neles pudessem ser identificados elementos totalmente contraditórios: de um lado, esforço amplamente afirmado de dirigir à política uma série de perguntas que tradicionalmente não estavam presentes no seu campo estatutário (a questão feminina, das relações entre os sexos, da medicina, da doença mental, do ambiente, das minorias, da delinqüência); e, por outro lado, vontade de retranscrever (retranscrire) todos estes problemas no vocabulário de uma teoria que dependia, mais ou menos diretamente, do marxismo. Ora, o processo que se deu naquele momento não levou ao confisco dos problemas por parte da doutrina marxista, mas, pelo contrário, a uma impotência cada vez manifesta do marxismo em enfrentar tais problemas. Deste modo, a gente se defrontou com perguntas dirigidas à política, sem que tivessem nascido de uma doutrina política. Sob este ponto de vista, me parece que tal libertação do questionamento tenha desenvolvido função positiva: pluralidade das questões postas à política e não re-inserção do questionamento no campo de uma doutrina política.

O senhor diria que seu trabalho está centrado nas relações entre a ética, a política e a genealogia da verdade?

Sob certos aspectos, se poderia afirmar que procuro analisar as relações entre ciência, política e ética. Mas não acredito que seria representação totalmente exata do trabalho que pretendo realizar. Não gostaria de me deter neste plano; procuro sim, ver como os processos tenham podido interferir entre si na constituição de um campo científico, de uma estrutura política, de uma pratica moral. Tomemos o exemplo da psiquiatria: hoje ela pode ser analisada na sua estrutura epistemológica - mesmo que seja ainda muito fraca; pode ser também analisada no campo das instituições políticas em que realiza seus efeitos; pode ser estudada igualmente nas suas implicações éticas, do lado de quem é objeto da psiquiatria ou do lado do psiquiatra. Mas não era meu objetivo. Procurei sim ver como, na constituição da psiquiatria como ciência, na delimitação do seu campo e na definição do seu objeto, estavam implicadas uma estrutura política e uma prática moral, e isso no duplo sentido, de que estas eram pressupostos da organização progressiva da psiquiatria como ciência e de que as mesmas eram também influenciadas pela constituição da psiquiatria. Sem uma série de estruturas políticas e sem um conjunto de atitudes éticas não teria sido possível existir uma psiquiatria como a que conhecemos; mas, inversamente a constituição da loucura num campo de saber influenciou nas práticas políticas e nas atitudes éticas que lhe dizem respeito. Tratava-se de determinar a importância da política e da ética na constituição da loucura como âmbito particular de conhecimento cientifico, mas também de analisar os efeitos desta última sobre as práticas políticas e éticas.

A mesma coisa vale para a delinqüência. Tratava-se de verificar que estratégia política havia podido acontecer, ao fornecer um estatuto seu à criminalidade, em certas formas de saber e em certas atitudes morais; tratava-se também de ver como estas modalidades de conhecimento e estas formas de moral fossem refletidas e modificadas pelas técnicas disciplinares. No caso da sexualidade, procurei evidenciar a formação de uma atitude moral; mas procurei reconstituir tal formação através do jogo que existia entre ela e estruturas políticas (essencialmente na relação entre domínio de si e domínio sobre os outros, e entre esta e modalidades de conhecimento (conhecimento de si e conhecimento de diferentes âmbitos de atividade).

Nestes três âmbitos - os da loucura, da delinqüência e da sexualidade - privilegiei, portanto, de cada vez, um aspecto particular: a constituição de uma objetividade, a formação de uma política e de um governo de si, a elaboração de uma ética e de uma pratica de si mesmo. Mas, de cada vez, também procurei mostrar o lugar ocupado pelos dois outros componentes necessários para a construção de um campo de experiência. Trata-se, no fundo de diferentes exemplos em que estão envolvidos os três elementos fundamentais de qualquer experiência: um jogo de verdade, das relações de poder, das formas de relação consigo e com os outros. E se, de algum modo, cada um destes exemplos privilegia um destes três aspectos - pois a experiência da loucura organizou-se recentemente e sobretudo como um campo de saber, a do crime como âmbito de intervenção política, enquanto a da sexualidade foi definida como um lugar ético - quis mostrar, de cada vez, como os outros dois elementos estavam presentes, qual era seu papel como cada um deles era influenciado pelas transformações dos outros dois.

Há algum tempo o senhor fala de "história das problemáticas". O que entende exatamente com isso?

Durante muito tempo, procurei saber se é possível caracterizar a historia do pensamento, distinguindo-a da história das idéias, ou seja, da análise dos sistemas de representação, e da historia das mentalidades, isto é, da análise das atitudes e dos esquemas de comportamento. Pareceu-me que existisse um elemento capaz de caracterizar a história do pensamento: poder-se-ia chamá-lo os problemas ou, mais exatamente, as problematizações. O que distingue o pensamento é o fato de se tratar de algo completamente diferente do conjunto das representações que subjazem a um comportamento; é, ao mesmo tempo, completamente diverso do âmbito das atitudes que podem determiná-lo. O pensamento não é o que habita uma conduta e lhe dá sentido; é antes o que permite tomar distância com relação a este modo de agir ou de reagir, de a assumir como objeto de pensamento e de a questionar seu sentido, as suas condições e os seus objetivos. O pensamento é a liberdade com respeito àquilo que se faz, o movimento com que nos sapáramos daquilo que fazemos, com que o constituímos como objeto e o pensamos como problema.

Afirmar que o estudo de pensamento é a análise de uma liberdade não significa que temos a ver com um sistema formal que se refere apenas a si próprio. Na realidade, para que um âmbito de ação ou um comportamento entre no campo do pensamento, importa que alguns fatores o tenham tornado incerto, o tenham privado da sua familiaridade ou tenham provocado numerosas dificuldades a seu respeito. Tais elementos dependem dos processos sociais, econômicos ou políticos. Mas tem apenas função de incitamento. Podem existir e exercitar a sua ação por muito tempo, antes que apareça uma problematização efetiva por parte do pensamento. E quando intervém, a problematização não assume uma única forma que seria o resultado direto ou a expressão necessária destas dificuldades; é, sim, uma resposta original ou específica - muitas vezes multiforme, às vezes até contraditória nos seus diferentes aspectos - a tais dificuldades, que são definidas por uma situação ou por um contexto e que valem como possível pergunta.

A um mesmo conjunto de dificuldades podem ser dadas diversificadas respostas. E de fato são propostas diferenciadas respostas. Ora, é preciso compreender o que as torna simultaneamente possíveis; o ponto em que está enraizada a sua simultaneidade; o terreno que pode nutrir a todas elas na sua diversidade e, às vezes, não obstante as suas contradições. Diante das dificuldades encontradas pela prática da doença mental no século XVIII, foram dadas diferentes soluções: a de Tuke e a de Pinel são apenas exemplos disso; ao mesmo tempo, na segunda metade do século XVIII, diante das dificuldades encontradas pela prática penal, foi apresentada uma série de soluções; ou, ainda, para dar um exemplo muito distante, diante das dificuldades da ética sexual tradicional, as diferentes escolas filosóficas da época helenista propuseram soluções diversas.

O trabalho de uma historia do pensamento, porem, deveria consistir em achar na raiz destas diferentes soluções a forma geral de problematização que as tornou possíveis - até mesmo na posição entre as mesmas; ou, então, o que permitiu transformar as dificuldades e os obstáculos de uma prática no caso de um problema geral para o qual são apresentadas respostas práticas diversas. É a problematização que responde a tais dificuldades, fazendo, porém, algo completamente diferente do que traduzi-las ou evidenciá-las; ela elabora as condições em que podem ser dadas as respostas possíveis; define os elementos a que se esforçam de responder as diferentes soluções. Tal elaboração de um dado em questão, esta transformação de um conjunto de obstáculos e de dificuldades em problemas a que as diferentes soluções buscarão dar resposta eis o que constitui o ponto de problematização e o trabalho específico do pensamento.

É evidente quanto se está longe de uma análise em termos de desconstrução (qualquer confusão entre estes dois métodos seria imprudente). Trata-se, pelo contrário, de um movimento de análise crítica através do qual se busca verificar como foram construídas as diferentes soluções de um problema; mas também como tais diferentes soluções dependem de uma forma específica de problematização. Percebe-se assim que toda solução nova que venha a ser acrescentada às outras depende da problematização atual, modificando apenas determinado postulado ou princípio sobre o qual se apóiam as respostas dadas. O trabalho da reflexão filosófica e histórica recoloca-se no campo de trabalho do pensamento sob a condição de que a problematização seja entendida, não como uma adaptação das representações, mas como trabalho do pensamento.


Traduzido e disponibilizado pelo Prof. Dr. Selvino José Assmann - UFSC- CFH/CED

Florianópolis, setembro de 2001